Entrevista com a Arqueóloga Inês Mendes da Silva

Todas as fundações da cidade estão a ser revistas. Se não fosse esta vaga brutal de construção e reabilitação que está a acontecer, nós não teríamos acesso a metade do conhecimento sobre a história de Lisboa que temos atualmente.

Lucinda Correia – Inês Mendes da Silva, como é poderia definir o momento actual de transformação da cidade de Lisboa? 

Inês Mendes da Silva – Obviamente que é visível que estamos num período de grande desenvolvimento em termos de transformação da cidade. Transformação no sentido da reabilitação não só estética, mas estrutural que também é fundamental. Essa transformação está a mexer com muita coisa, com aspectos económicos e sociais porque apesar de no conceito da reabilitação o “reabilitar” ser positivo, tem levantado, como é do conhecimento de toda a gente, alguma polémica. Eu trabalho na ERA Arqueologia já há 20 anos. Nós temos sentido bastante porque a nossa área de actividade é, fundamentalmente, articulação directa com o desenvolvimento imobiliário, seja de construção nova, seja de reabilitação, sendo que em Lisboa maioritariamente é reabilitação. Nos últimos anos têm-se assisitido de uma forma exponecial, particularmente aqui em Lisboa, ao desenvolvimento desta actividade, não só ao nível estético, do que está à vista, mas também ao nível da reabilitação no sentido da própria estrutura porque tivemos imensos anos em que a construção não era assim tão fabulosa, agora estamos a apercebemo-nos todos disso. Portanto, nesta reabilitação não é só a questão estética que está em causa, também há um aspecto ao nível estrutural. Chamando à nossa linha de actividade que é a arqueologia que, tendencialmente, é ao nível do subsolo, todas as fundações da cidade estão, de alguma forma, a ser revistas. E é aí, no fundo, que a nossa actividade se vai articular de forma directa com a questão da obra propriamente dita. Fala-se em subsolo, e obviamente, em termos de PDM, o património da cidade, aquele que reside no subsolo, está relativamente salvaguardado pelo PDM e com a sua revisão. E, portanto, isso reflecte-se em termos institucionais, obviamente que reflecte cada vez mais a importância do património para a cidade e, por outro lado, também é uma forma de se perceber que há uma preocupação em que esta reabilitação, este movimento não seja feito de qualquer forma. Há regras e, cada vez há mais, exigência do ponto de vista da regulamentação e isso é bom para toda a gente. Em termos de património é bom porque salvaguarda o que é nosso e isso obviamente que é fundamental. Também desmistifica um pouco a ideia associada à reabilitação de que “vem aí o capital estrangeiro e açambarca isto tudo” Não, as coisas não estão bem a ser assim.

LC – Quando diz que está a ser salvaguardado esse património, há uma mais forte regulamentação e cuidado. Quer dizer que esses critérios de escolha daquilo que se mantém ou desse reforço das fundações estão a ser alvo de debate e são questões permanentes na obra. Ou seja, comparativamente há momentos em que isso era uma coisa que era ultrapassada e que, portanto, a arqueologia tinha um papel menos intenso nesse debate. Porque este debate do que fica, do que vai desses elementos, é sobretudo um debate entre arquitectos, engenheiros eventualmente também, e arqueólogos, correto? 

IMS – Eu há quase vinte anos que trabalho na cidade de Lisboa e sempre houve esta preocupação. Se calhar não tinha tanta visibilidade, mas quando se constrói, estamos a construir um prédio e vamos fazer novas fundações para o prédio que é para ver se o prédio não cai, como o prédio do lado está a cair, vamos abrir fundações. Há micro-estacaria, há várias opções em termos de engenharia e cada vez mais vão surgindo opções técnicas que permitem a quem está do lado da decisão tomar outras opções em termos da própria salvaguarda do património. A questão de “está-se a fazer uma obra e aparece qualquer coisa”, que é sempre um grande drama, tenho a certeza, tem vindo a se dissolver. Primeiro porque o promotor da obra já se começa a se aperceber que é uma mais valia conhecer o que é que tem no seu domínio, por assim dizer. A tutela, por outro lado, também está mais atenta. Actualmente já há um cuidado particular, até os próprios promotores, de quererem saber, antes de avançarem. Antes de avançarem até às vezes para a compra, pedem trabalhos antecipados, pedem pesquisa antecipada. O que eles pretendem saber é qual é que é a perspectiva para aquele espaço, o que é que nos pode vir a surgir. E já temos imensa informação da cidade de Lisboa, não só informação histórica, cartográfica, documental, como decorrente de todos os trabalhos de arqueologia que têm vindo a ser feitos. A Direcção Geral do Património Cultural tem uma base de dados que ainda precisa de muito trabalho, mas que é fundamental. Acho que devia ser mais divulgada porque é uma ferramenta brutal em termos de planeamento. No fundo, uma pessoa entra no site duma instituição pública, abre um mapa da cidade de Lisboa e escolhe uma freguesia. Aparecem os sítios que estão referenciados no mapa. E a pessoa diz, “o meu prédio está mesmo aqui no meio, a possibilidade de não aparecer nada é ínfima, portanto vou-me preparar para isso”. Em termos de planeamento de obra é espectacular. A arquitectura ou assume à partida que não há cabimento para aquele tipo de estruturas ou para aquele tipo de vestígios que possam vir a aparecer, e aí o processo decorre de forma administrativa, as coisas são postas à vista, são devidamente registadas, caracterizadas, enquadradas dentro do período a que pertencem e depois é feita uma proposta à DGPC no sentido de se proceder ao desmonte daquela estrutura para se poder avançar com a empreitada propriamente dita. Obviamente que se procura que o desmonte seja a última opção. Nos últimos anos tem-se assistido de forma recorrente àquilo a que se chama a salvaguarda pelo registo. 

LC – Como é que a Arqueologia se relaciona neste momento com as questões da reabilitação urbana e quais os possíveis impactos na história da construção de Lisboa?

IMS – Eu acho que essa articulação existe e é cada vez mais positiva para todos. É positiva para o património porque se não fosse esta vaga brutal que está agora a acontecer, em termos de construção e reabilitação, nós não tínhamos acesso a metade do conhecimento em termos de história de Lisboa que temos. As obras da zona ribeirinha, por exemplo, estão-nos a permitir afinar ao centímetro, ao milímetro o que era a antiga linha de costa da cidade de Lisboa. Está-nos a permitir, fundamentar e objectivar os conhecimentos que de alguma forma nós já tínhamos, mas em teoria. E está-nos a permitir também perceber, através da leitura das diferentes camadas, o que é que foi, por exemplo, a ocupação desde que aqui a nossa marginal era só praia. A vivência desse espaço está a ser recuperada através do registo arqueológico.

LC - Claro. Este momento pode equiparar-se a um outro momento de transformação da cidade de Lisboa?

IMS - A gestão da mudança é sempre uma coisa complexa em todas as áreas. Nesta questão da reabilitação, como é uma coisa muito óbvia, porque é uma coisa visual, uma pessoa vai lidar com aquele edifício que sofreu aquelas alterações. E, portanto, a tomada de decisão de um projectista que avança com uma ideia depende de cada pessoa, mas eu tenho visto projectos muito engraçados e que depois se calhar não têm sequência porque criaram de alguma forma uma marca que os distingue. Porquê? É um projecto que vai reabilitar, mas que também há obviamente a vontade, e a necessidade para dar resposta a questões de conforto, e às questões de segurança, e também do ponto de vista do próprio artista, porque o projectista ou arquitecto é um artista, deixar a sua marca, o que é normal. Obviamente que a tutela tem que ter o cuidado disto não ficar um espaço um bocadinho extraordinário por causa dos excessos que sempre há. Por outro lado, se calhar é este equilíbrio que nós ainda temos que crescer todos nesse sentido, mas fixar-se só num determinado mindset e dizer "não, isto é um edifício pombalino e, portanto, tem que recuperar a traça original e tem que ficar como era". Isto tem muito que se lhe diga, porque a determinada altura coloca-se esta questão: como é que nós vamos recuperar uma coisa que já está tão deturpada - porque nós tivemos os famosos anos 70 e anos 80 que criaram aqui coisas extraordinárias, então aqui na Baixa notamos muito isso - quando agora, no séc. XXI, dizem que nós temos que ir buscar o original? A dada altura uma pessoa tem que pensar, mas qual original? E nós agora vamos propor este projecto em que nós assumimos que o original já estava tão alterado que nós nem sabemos como recuperar e que momento recuperar, estamos a propôr uma coisa que realmente marca uma diferença. É como na conservação e restauro, nós vamos fazer o restauro de um estuque, ou de uma peça qualquer, e assume-se a diferença do restauro. Ou seja, as pessoas sabem que está ali uma peça que sofreu uma ação de manutenção, mas que não tem que ser uma cópia. Há sempre essa possibilidade, os da conservação e restauro têm essa linha de pensamento que têm várias escolas, essa é uma delas. E no fundo o edificado, isto a determinada altura também tem que se assumir, as coisas não param. 

LC - Então, como é que vê a cidade de Lisboa daqui a 10 anos?

IMS - Para mim vai continuar fantástca. Gosto muito desta cidade. Não é porque cá nasci, mas é porque é uma cidade que se presta a que se goste dela. Acho que do ponto de vista da sanidade da cidade, se assim se pode chamar, acho que efectivamente vai haver uma evolução. Acho que essa evolução tem a ganhar se houver uma efectiva articulação entre todas as partes. Acho que não vai ser só uma melhoria em termos de aspecto, vai acima de tudo ser uma melhoria estrutural, que é necessária, por todas as condicionantes de nós vivermos numa cidade que está sempre um bocadinho sob aquela expectativa, “olha qualquer dia temos aqui um sismo”. Nós temos que pensar que o aspecto estético é realmente muito importante, mas, voltamos à história das fundações. As pessoas têm que perceber que há trabalho a ser feito. Quer dizer, houve muitas asneiras feitas na cidade de Lisboa, nomeadamente a construção aqui na Baixa. É terrível a quantidade de caves ilegais que existem, construídas das formas mais extraordinárias. Assim como há pessoas que dizem "eu quero um open space fantástico e, portanto, vou tirar esta parede", e, portanto, temos edifícios a abaterem. Daqui há 10 anos, há muitas coisas aqui que têm de ser tidas em consideração, socialmente, acima de tudo. A verdade é que esta onda está a permitir que bairros como Alfama ou como a Mouraria que infelizmente há 10 anos não se podia entrar porque as casas estavam em ruínas e as pessoas viviam nessas casas, sejam recuperados. Agora, um bocadinho para o bem e para o mal, para o bem da cidade no sentido em que estão a recuperar estruturalmente a cidade, mas há situações obviamente que têm que ter outro tratamento porque há todo o aspecto social que é inerente a isso. E nós quando trabalhamos nas obras temos muito essa percepção. Das pessoas e da vivência dos espaços e o que esta reabilitação, nessas zonas, está a causar. Essa parte, a meu ver, ainda não teve o devido acompanhamento. Pode ser que, agora as pessoas estejam um bocadinho mais sensibilizadas, que o que está para vir, nesses tais próximos anos tenha outro tipo de acompanhamento e outro tipo de desenvolvimento. Agora, que a meu ver, efectivamente, a cidade vai melhorar, eu penso que sim, sem dúvida. Vai ficar ainda mais bonita.

 

 

 

Inês Mendes da Silva é arqueóloga e trabalha na ERA, Arqueologia onde coordena projectos de arqueologia urbana na cidade de Lisboa.