Entrevista com a Arqueóloga Jacinta Bugalhão

Nós só teremos uma Lisboa maravilhosa como desejamos quando as decisões sobre a cidade sejam baseadas no conhecimento participado.

Lucinda Correia - Como é que poderia definir o momento actual de transformação de Lisboa?

Jacinta Bugalhão - Eu diria que há dois tempos ou duas velocidades. Se vista a coisa numa velocidade, num tempo longo, o momento da cidade de Lisboa é um momento de persistência, ou seja, a cidade, num tempo longo. Portanto, não estou a falar dos últimos dez anos, dos últimos 20 anos, estou a falar dos últimos 100, 200 anos. É um movimento de persistência. Lisboa foi uma cidade que cresceu de forma contínua no espaço com linhas de crescimento, quase como se fosse um polvo, com uma cabeça e vários tentáculos. Isso tem a ver com o território, por isso temos que compreender o território: como é que funciona a topografia, a hidrografia, como é que funciona o território, a relação deste território, que hoje é a cidade de Lisboa, com o resto do território envolvente, seja ele terra, seja ele água. Porque Lisboa é uma cidade completamente aquática, marítima, fluvial, etc. A cidade cresceu, lá está, num primeiro momento em linhas, a partir da sua cabeça, seu núcleo, com os seus tentáculos, dois tentáculos, um para cada margem do rio, no sentido poente, no sentido nascente. E depois, para a terra, a cidade cresceu também em diversas linhas. Tem muito a ver com os vales, com os eixos viários antigos e cristalizados na paisagem, etc. Isso é um momento longo, podia-se dizer que talvez durou mil e quinhentos anos. A partir de 1500, 1600, talvez mesmo 2000 anos de existência, a cidade começou a ter um movimento diferente, que foi um movimento de colmatação dos espaços vagos entre as tais linhas, os tais tentáculos, em que a cidade se espraiou. Houve um espalhamento da cidade pelo resto do território, que é o território da cidade hoje. É claro que esse movimento, começou eu diria que talvez, a partir do século XVI, XVII, e só se concretizou em absoluto já muito depois do terremoto, já no século XX talvez. A partir do momento em que esses eixos estão preenchidos, que o território está preenchido, a cidade que persiste num mesmo espaço. Persiste, adapta-se, altera-se um pouco aqui, um pouco ali. Muitas vezes existem diferenças nas áreas funcionais da cidade. Numa determinada altura, o Centro é num local e movimenta-se ligeiramente para outro ou para outro.  Também a hierarquia dos espaços urbanos vai mudando, mas, essencialmente, a cidade mantém-se. Eu penso que ainda estamos nessa fase em que a cidade persiste. Por que que eu digo isto? Porque não existem movimentos bruscos de retracção da cidade. Eu digo isto porque há cidades em que isso acontece, cidades atuais em que isto acontece, em que grandes espaços urbanos que já foram cidade, deixaram de ser. Passaram a ser campo e isso em Lisboa não está a acontecer. Pode vir a acontecer, um dia, mas para já, não. Mas este é o tempo longo, não é, depois temos o tempo mais curto, um bocadinho mais conjuntural. Nesse tempo, o que que eu posso dizer? Vejo aquilo que toda a gente vê e que se sente na rua e que se lê nos jornais e que se ouve nos telejornais: que existe uma grande instabilidade ao nível da propriedade. Portanto, existe muita alteração de titularidade da propriedade na cidade. Verificou-se também algo que era uma tendência muito conjuntural de uma certa desertificação de alguns espaços urbanos no Centro, essencialmente na Baixa porque nos outros bairros não parece que isso se verificasse, mas havia realmente alguma desertificação, algum abandono da propriedade. Os edifícios não estavam a ser ocupados, estavam desocupados ou devolutos, como muitas vezes se dizia porque depois até entravam num estado um bocado arruinado. Quando a baixa pombalina tinha uma determinada função, e teve até os anos 1970 de forma intensa, e depois essa função transferiu-se para outros espaços urbanos, houve ali alguma desocupação dos espaços edificados. Isso, nestes últimos tempos, tem se revertido, essencialmente devido à actividade turística. Há uma ocupação essencialmente turística dos edifícios que não tem tido o ordenamento devido porque não foi tida em devida consideração a função habitacional e não se tentou devidamente manter uma parcela importante de habitação nesses espaços urbanos. O facto é que foram ocupados e têm vindo a ser ocupados espaços anteriormente, nas ultimas duas, três décadas, desocupados. A alteração da propriedade acarreta alguma alteração também a nível social, social urbano e isso eu penso que é um assunto que preocupa muito os lisboetas, nas suas diversas vertentes, não só sociais, mas também económicas, porque isso tem tudo a ver com uma actividade económica que se teme que não seja consistente ou que não tenha condições de sustentabilidade. Na questão das alterações sociais preocupa muito o facto de haver franjas de população pela sua menor capacidade económica possam estar a ser empurradas para fora do espaço urbano.

LC - Mas, no fundo, quando fala desses dois tempos é no sentido de chamar a atenção para que não podemos ler o tempo curto sem ler o tempo longo simultaneamente...

JB – Exactamente. Há muitos tempos curtos e nós temos que nos preocupar com eles porque temos que resolver os problemas que temos e somos os que cá estamos. Só que, para um arqueólogo, há uma certa relativização que tem a ver com a questão dos tempos. As alterações da cidade não são tão momentâneas para um arqueólogo.... É claro que se eu estiver a falar como lisboeta, como cidadã, é claro que eu posso dar outro testemunho, mas pode não ser tão interessante. Mais interessante este que eu tenho como profissional. Por exemplo, uma das questões que eu noto é a seguinte: nós, durante muito tempo, tínhamos a cidade com menos intervenção. Não tem só a ver com a crise, mesmo antes, estamos a falar dos anos 1980, 1990, mesmo na primeira década do século XXI. Havia intervenções, como também havia vontade das entidades públicas e não só, das forças sociais, da chamada sociedade civil, de haver reabilitação. E não só intervenção no espaço público porque isto não tem só a ver com reabilitação no sentido da intervenção nos espaços mais históricos, arquitetonicamente mais históricos da cidade, mas é muito importante a relevância que tem intervenção no espaço público, em todo espaço público, porque as pessoas não vivem apenas nas suas casas e é quase que tão importante para as pessoas o espaço exterior, o espaço público, quanto o espaço privado. O que que é mais importante para um lisboeta? É a sua casa ou se a sua casa é grande ou pequena ou tem condições melhores ou piores de habitabilidade. Claro que isso tudo é importantíssimo. Ou então, se conseguem chegar com o carro das compras ou se passam muito tempo no trânsito ou se tem equipamentos, serviços. A questão da gestão dos resíduos que é muito importante também numa cidade pelo espaço que ocupa. Portanto, a intervenção no espaço público é absolutamente essencial numa cidade e no ponto de vista também patrimonial porque é tão importante como as casas, como os edifícios. E no meio disto tudo, do espaço público e das casas e das pessoas, enfim, e dos equipamentos e das infraestruturas, temos pontinhos que são o que ficou do passado, os monumentos. E estou a falar de monumentos construídos, arquitetónicos, que são pontos que na cidade ficam, fazem parte da cidade, e todas a cidades dignas desse nome os têm, e quanto mais tiverem, melhores são como cidades e melhor é a sua autoimagem. São espaços ou pontos, com afastamento de escala são pontos, em que o tempo, de alguma maneira, parou e em que os próprios cidadãos, os utentes da cidade, se esforçam para que o tempo esteja parado, no sentido que tem que se preservar. Se tem que se preservar, não se deve mexer, parou. Há ali um momento, um ponto, de paragem do tempo. E a cidade como espaço vive também deste conflito, que é um espaço, um território que está em permanente mudança, nomeadamente por causa dessa questão do espaço público e das casas... Para além de haver estas diferenças, o tempo curto, o tempo longo, o tempo médio, os tempos todos do mundo, que os há numa cidade mais do que nos outros espaços, numa cidade há sempre mais, existe essa diferença de tratamento de espaços dentro do território urbano. Temos espaços em que não se pode mexer ou porque tem um edifico histórico ou por outra razão que acontece. Por exemplo, Monsanto, não se pode mexer porque é a mata da cidade, o espaço postal da cidade, mas ao mesmo tempo, temos uma pulsão humana ou natural de permanente intervenção, para melhorar o espaço público, para melhorar as casas das pessoas, por motivos económicos porque a atividade económica também se desenvolve essencialmente na cidade e é assim que é a nossa vida. Todos estes conflitos tornam o espaço urbano mais interessante da nossa realidade também patrimonial e histórica. 

LC - Como vê a reabilitação urbana praticada em Lisboa na sua relação com o património construído?

JB - Eu não sou propriamente técnica do património construído, sou arqueóloga. No entanto, quer me parecer que existe uma desregulação total e quer me parecer porque todos os dias trabalho numa instituição onde as coisas estão a acontecer e nós vemos como é que acontece. A intervenção no edificado está muito regulamentada. Nós temos manuais, regulamentos, etc., e uma parte desses regulamentos destinam-se também a proteger o património edificado. Proteger no sentido de que são bens comuns e públicos e que devem ser salvaguardados, mas o que eu noto é que não existe uma estratégia de salvaguarda do património construído na cidade de Lisboa. O que se faz é uma actividade casuística baseada em procedimentos que estão mais ou menos tipificados nas instituições, a Câmara Municipal e a DGPC, que são repetidos de forma mais ou menos mecânica, sem haver uma reflexão, sem haver uma visão de conjunto, sem haver um afastamento de escala, etc. E isso agravou-se nos últimos anos. Por que? Por causa da quantidade. Estas instituições, quer a Câmara de Lisboa, quer a DGPC, eu falo mais particularmente da DGPC porque a conheço melhor, não estavam preparadas, nem ao nível dos seus recursos humanos, nem da sua infraestrutura técnica e tecnológica, ao nível talvez até da preparação técnica das pessoas por nós, para conseguir responder ao que aconteceu, que foi um aumento muito grande das obras de uma forma geral. Como tem que responder porque a lei obriga que responda, responde, vai respondendo, mecanicamente. Transformou-se assim, mais ou menos, numa fábrica de processar papel em que entram processos, a gente vê o processo, faz o parecer, sai o parecer e pronto. É claro que houve um esforço grande da Câmara Municipal nos últimos anos ao nível do ordenamento do território, nomeadamente ao nível dos planos de pormenor, e isso foi bom porque dá algumas balizas, mas não é suficiente. Tinha que haver a capacidade que não existe de todo, capacidade humana, técnica, logística, tecnológica, volto a dizer, infraestruturas, para ter uma visão sobre o que se passa na cidade um bocadinho mais ponderada, mais afastada, e para permitir que a actividade de salvaguarda, ou seja, a percepção dos projectos que entram, fosse de maior qualidade, produzisse resultados com maior qualidade. E eu penso que isto não está a acontecer de todo. A arqueologia aqui também entra, mas a arqueologia eu diria que tem o seu trabalho um pouco mais facilitado, embora também soframos muito com a quantidade porque é demasiado, não conseguimos gerir a informação. Ou seja, os arqueólogos estão sempre a intervir na cidade, sempre que há uma obra num espaço que já sabemos que tem que ter intervenção, até porque assim é obrigatório de acordo com a gestão do território, com os instrumentos de gestão do território que temos. A intervenção está sempre a acontecer, mas nós não temos capacidade para gerir os resultados dessa intervenção. Não temos capacidade para saber se a intervenção está a ser bem ou malfeita, não temos capacidade para verificar se estamos fazendo as coisas com padrões de qualidade adequados, mas muito menos temos capacidade para transformar os dados que se recolhem nas intervenções arqueológicas em conhecimento histórico. Não temos capacidade para fazer investigação, para fazer publicação, para gerir os dados, volto a falar da infraestrutura tecnológica. Nem nós temos, nem a Câmara Municipal, ninguém tem. Nem se vislumbra a possibilidade de virmos a ter. Os dados estão acumulados dentro de dossiês. Os nossos sistemas de informação estão muito obsoletos e não tem capacidade de responder às necessidades do presente, essa intensidade de intervenção na cidade. 

LC - E isto ecoa também com a próxima questão. Podemos pensar numa cultura de reabilitação centrada no edificado de Lisboa que domina as técnicas de uma reabilitação mais reflexiva e que contribua para o planeamento sustentável da cidade, tendo em conta as suas condições geomorfológicas, os sistemas construtivos, o risco sísmico?

JB - Era o que devíamos fazer. Agora, para que isso aconteça, é muito difícil. É muito difícil porque isso tem a ver com a nossa infraestrutura nacional. Ou seja, como é que nós funcionamos como sociedade. Nós não temos essa cultura. Já apanhamos o transporte com algum atraso e não é fácil suprir atrasos estruturais como os que nós temos. E então, andamos sempre um bocado a correr atrás do prejuízo. Devia haver forma de que a intervenção na cidade não fosse casuística.Ou seja, na minha opinião, a estratégia que devia estar subjacente à intervenção na cidade, quer seja ela de reabilitação urbana, quer seja outra, volto a dizer, deveria ter como base o conhecimento.  Para que isso aconteça, tem que haver uma estrutura, uma infraestrutura, que o permita, ou seja, que permita que quem detém o conhecimento esteja enquadrado no processo de decisão. E o que a gente verifica é que não há formas de enquadrar o conhecimento no processo de decisão. O processo de decisão continua a ser um ato administrativo, nem sequer é um ato técnico, muito menos é um ato de conhecimento. Portanto, mesmo este esforço que se fez e que tem que ser saudado que foi feito nas últimas décadas, duas essencialmente, de ordenar o espaço urbano com instrumentos adequados e melhores, muito melhores do que existiam antes, até porque antes, na maior parte dos casos, eram inexistentes. Mesmo esse, não é suficiente para que se dê esse passo em frente de qualificação. Nós só teremos uma Lisboa maravilhosa como desejamos, quando as decisões sobre a cidade sejam muito baseadas no conhecimento participado. Não podem ser os sábios, lá nas suas cátedras, a tomar decisões. Creio que já se experimentou em outros sítios e não resultou. Portanto, o que resulta é que o conhecimento seja um fator a ter em consideração na vida urbana, nas decisões urbanas, no processo de funcionamento da cidade no seu todo. 

LC - Então, como é que vê a cidade de Lisboa daqui a dez anos?

JB - Não acho que seja muito diferente de hoje. Tenho algumas preocupações, temo que aconteçam coisas assim um bocado mais más, nomeadamente, novamente com o colapso de determinadas áreas urbanas porque se desfuncionalizam, como já aconteceu no passado. Isso é uma coisa muito perigosa. Acho que Lisboa é uma cidade com um potencial muito grande. Acho que nunca mais vamos deixar de ser uma grande cidade turística. Eu acho que, em princípio, Lisboa tem as características suficientes para nunca deixar de ser uma grande cidade de viagem, digamos assim. Uma cidade que muita gente no mundo queira visitar, acho que isso pode ser uma linha de continuidade que fique para sempre. Penso que daqui a dez anos não haverá grandes diferenças, não vejo grandes sinais de mudança. 

LC - Nem ao nível da participação?

JB - Era bom que assim acontecesse. Também pode ignorância minha, mas não noto que haja assim tantos sinais de mudança a esse nível. E, principalmente, acho preocupante que as mudanças que têm acontecido e que se consubstanciam em participação, mesmo em tomada de posições das comunidades mais locais, etc., não vejo que sejam encaminhadas, sinceramente, é pelo contrário. Portanto, não estou a ver como é que Lisboa se vai tornar uma cidade mais participada se os impulsos que existem e que não são tantos como deveria. Lá está, isso tem a ver com as nossas condições sociais e culturais também. Mas os poucos que há e que têm a ver com problema concretos das pessoas, eu não noto que sejam tão acarinhados assim. Eu não noto, posso estar enganada. Não noto. Portanto, a resposta a essa pergunta, eu acho que Lisboa não vai ser uma cidade muito diferente, espero que melhore em algumas coisas, que possa ir melhorando alguns aspectos, mas ao nível, nomeadamente, que estamos a falar, que tem a ver com os processos de reabilitação e da proteção do edificado histórico, etc., não noto que haja grandes sinais de mudança. Tomara que me engane.

 

 

 

Jacinta Bugalhão é arqueóloga e trabalha com arqueologia urbana em Lisboa desde o começo da sua carreira. Sua atividade, quer a nível profissional ou nível académico, desenvolveu-se relacionada à elaboração de instrumentos de gestão do território, ao nível da criação de regras de intervenção da cidade, nomeadamente, de intervenção no subsolo.