Entrevista com a Arqueóloga Maria Ramalho

Ora, o que se está a fazer aos edifícios não é dar dignidade nenhuma. O que se está a fazer é uma renovação.

Lucinda Correira – Maria Ramalho, como é que poderia definir o momento actual de transformação de Lisboa?

Maria Ramalho – É um momento radical. É um momento que nos está a deixar todos um pouco apreensivos. Eu acho que já começa a haver muita gente a aperceber-se que é um momento especial da história da nossa cidade. Claro que terá aspectos positivos, é certo. Mas sobretudo eu acho que está a ter um peso muito negativo na vida das pessoas que aqui moram e no urbanismo, nas características especiais que tem esta cidade tão fantástica. A situação que existia não era muito boa, fruto de uma série de questões legais, do arrendamento, da crise, etc, também da expansão da aposta em construção nova. Uma série de circunstâncias que não estavam bem no passado, mas passámos agora a uma situação que também não está a correr nada bem. Portanto, eu diria que o momento presente é o momento em que temos todos de pensar muito bem no que queremos para esta cidade e agir, sobretudo agir. E deixarmo-nos de debates, porque já se debateu demais, já se chegou a conclusões e é preciso agora partir para a frente e agir e travar este processo que não está a ser positivo para a cidade.

Eu também gosto de falar destas coisas porque tenho dedicado um pouco a minha vida ao estudo da arquitectura. Eu sou arqueóloga, mas tenho trabalhado sempre em espaços arquitectónicos, conventuais, igrejas, etc e dediquei-me, sobretudo, à arqueologia da arquitectura, que é uma disciplina que pretende aplicar o olhar ou o método arqueológico ao edifício. E, portanto, dar-lhe a espessura histórica, compreender todos os processos da estratificação dos edifícios, e revelar essa história escondida que a maior parte das pessoas não conhece. Portanto, no fundo, é pôr os edifícios a falar da sua própria história. E por isso a minha sensibilidade especial às questões da Arquitectura, do Urbanismo antigo e agora também, logicamente, às questões sociais e da paisagem. Questões sociais que estão realmente também muito ligadas a isto tudo. Eu não falo só porque estou interessada nas pedras ou na Arqueologia, estou interessada num todo. E é isso que é preciso olhar.

LC – Como vê a reabilitação urbana praticada em Lisboa na sua relação com o património construído?

MR – Bom, a palavra reabilitação, logo aí é preciso dar o nome certo às coisas. Fala-se muito em reabilitação urbana, e o que se está a fazer não é, em muitos casos, eu não digo que sejam todos, lógico, e às vezes a pessoa precisa de falar mais daquilo que vai mal, sabendo-se logicamente que há coisas que correm melhor. Mas como aquilo que vai mal começa a ser demasiado, eu queria dizer que reabilitar não é isto que se está a passar. Reabilitar. Quando a pessoa diz, por exemplo: “quero reabilitar o meu bom nome”, quer devolver a dignidade que tinha sido posta em causa. Portanto, no fundo, é dar outra vez o valor que a pessoa acha que tem, que tem que ser divulgado. Ora, o que se está a fazer aos edifícios não é dar dignidade nenhuma. O que se está a fazer é uma renovação. Portanto, são acções muito profundas ao nível dos interiores, sobretudo, que não têm nada a ver com reabilitar. Reabilitar é, realmente, dar dignidade. É pegar naquilo que existe, reformular, adaptar aos novos usos, sim senhora, mas sem lhe tirar a alma, aquilo que lhes dá significado. Estamos a falar, e eu lembro que eu falo sobretudo das questões da cidade histórica, quando há, sistematicamente, apreciações que dizem que o edifício não tem qualquer hipótese de se manter, está em mau estado, aparecem n relatórios prévios que consideraram que o edifício está em mau estado. Eu já vi casos em que isso é perfeitamente mentira. São formas de facilitar a sua demolição completa, de forma a adaptar-se à tipologia que se pretende, uma tipologia que está muito ligada às questões do turismo de massas, que é o que nos está a afligir a todos. Não é contra o turismo, mas contra esta especulação desenfreada que está a arruinar a cidade. É preciso haver planeamento, gestão e reabilitação verdadeira. Eu não sou utópica nem sou ingénua. Sei que quando há muito dinheiro estas tendências são mais que óbvias, mas para isso é que existem governantes, políticos, presidentes de câmara, directores de vários serviços que têm a ver com estas coisas, porque a sua missão é também a de preservar o que há. Porque já que se fez tanto fora destas zonas históricas, tanto e tanto, um exagero brutal de construção, já temos tão pouco, se calhar vamos agora ser radicais no sentido de ir à raiz da coisa, vamos ver que realmente não vale, vamos queimar o que nos resta. Já não há muito território com qualidade urbana e com uma espessura histórica como este. Vamos com calma. E é isso que não se está a passar.

LC – Podemos pensar numa cultura de reabilitação centrada no edificado de Lisboa que domine as técnicas de uma reabilitação mais reflexiva e que contribua para o planeamento sustentável da cidade, tendo em conta as suas condições geomorfológicas, sistemas construtivos, o risco sísmico, etc?

MR – Eu vejo nesta conjuntura até muita gente a formar-se nesta área. Curiosamente há várias especialidades na área da reabilitação, do património. De vez em quando vou dar umas aulas ao Porto, à Universidade de Arquitectura, e também na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. E vejo que há gente interessada, há gente preocupada a estudar os materiais, as técnicas antigas, a fazer restauro. Pessoas com muita qualidade, jovens e pequenas e médias empresas. E depois falam comigo, quando eu dou as aulas e falo sobre estes assuntos, dizem realmente que têm muita pena, mas o que vêem a acontecer não tem nada que ver com aquilo que eles gostariam de aplicar e que são muitas vezes sujeitos a trabalhar para empresas que tem tudo menos a tradição de reabilitar como deve ser. São empresas muitas vezes importadas da construção nova, em que não lhes interessa nem têm sequer técnicos para isso, para essas áreas. Muitas vezes o [risco] sísmico serve também para dizer está tudo mal, vamos deitar tudo abaixo. O que não é verdade, porque, inclusivamente, já tive oportunidade de falar e convidar para alguns seminários pessoas da área da engenharia que me provaram que é possível recuperar coisas que até eu, que sou arqueóloga, diria que não teriam solução. Mas com aparelhos [com] que é possível, por exemplo, analisar a resistência das madeiras, dos soalhos, das grandes traves, a maior parte das pessoas deita aquilo tudo fora. É possível reabilitar imensas peças que fazem parte da história do edifício. É possível também contornar legislação. É fácil dizer: ah, a legislação agora, hoje em dia, obriga a uma série de coisas, portanto não vale a pena, isto depois sujeitamo-nos a ver os nossos projectos reprovados. Julgo que também há um certo exagero, porque inclusivamente [para] edifícios que têm mais de 30 anos há uma certa facilidade em não se aplicarem algumas regras. Portanto, há muitos enganos, há muitas... quer dizer, isto é uma floresta tal de problemas e de leis que se contradizem. Inclusivamente, agora há um projecto de reabilitar com regra que pretende reunir todas estas questões e chegar a algum corpo legal que possa ser eficaz, e, no meu caso, estou interessada no caso do património arquitectónico e arqueológico. Portanto, eu acho que com um bom planeamento, em que se olhe para a cidade doutra forma... Por exemplo, os planos de pormenor de salvaguarda, que são sempre aqueles instrumentos que poderiam ajudar a pensar a cidade doutra maneira, foram pura e simplesmente postos de lado, substituídos por umas áreas de reabilitação urbana onde a facilidade para licenciar é muito maior, a velocidade com que se fazem os procedimentos é muito maior, os técnicos não têm tempo para ver as coisas com calma, a fiscalização é praticamente inexistente. Portanto põe-se tudo nas mãos dos que fazem os projectos, do projectista, à sua responsabilidade. Portanto, isto está tudo bastante ligado com más práticas. Era possível, sim, era possível fazer uma reabilitação, mas em que se pusesse em primeiro lugar aquilo que importa, que é a preservação da cidade, uma boa reabilitação, as pessoas, e não o máximo lucro com o menor número de intervenientes possíveis para não chatearem. E  todos os aspectos técnicos que andámos durante anos a ver ser chamados à atenção, as questões da baixa pombalina, por exemplo, a importância dos edifícios pombalinos, todas estas questões técnicas estão a ser passadas para o lado para haver uma única voz, que é a voz política cada vez mais concentrada numa ou duas pessoas. Portanto, isto não é nem um processo democrático, nem tecnicamente aceitável nem humanamente viável. Isto não tem sequer futuro. Vamos ficar com uma cidade [em] que a aparência é uma mas a realidade é outra.

LC – Qual seria a importância de se continuar a trabalhar ou a investir nos planos de pormenor de salvaguarda para a cidade? Ter esta visão crítica mais integrada.

MR – Pois, portanto, obrigava a um olhar muito mais atento, e a definir regras muito mais ajustadas à realidade no terreno, participação muito mais alargada de técnicos de várias áreas. Mas considerou-se que facilitava, no mau sentido, a meu ver, criar áreas de reabilitação urbana gigantescas onde há muito mais facilidade para se obterem os licenciamentos. Temos o caso, que eu acho paradigmático, da baixa pombalina, e lamentável, a meu ver, que está dividido em dois. Uma metade tem um plano de pormenor de salvaguarda e a outra metade tem que obedecer às regras da classificação que possui. Houve essa incapacidade de trabalhar os planos de pormenor de salvaguarda, que eu lamento, mas é isso que dizem todas as cartas internacionais, ICOMS, UNESCO, etc, ainda mais tratando-se de uma zona que pretende ser classificada património mundial. Portanto, temos que falar claro. Ou queremos que as coisas tenham valor, ou então andamos a fingir, andamos nos fachadismos que não interessam a ninguém, que não têm consistência nenhuma.

LC – E como é que vê a cidade daqui a 10 anos?

MR – Eu gostava de ver a cidade, daqui a 10 anos, verdadeiramente reabilitada e com pessoas. Com uma mistura de pessoas, não com esta mono-função que está instalada, mas com várias funções, com várias pessoas, multi-cultural, como sempre foi. E que se entrasse nos edifícios e não se visse sempre o mesmo padrão, que não se andasse nas ruas e se visse sempre a mesma função, comes e bebes e hotéis. E poderíamos ter tido hipótese, não sei se ainda vamos muito a tempo, de não repetir erros que foram feitos noutras cidades. Acho que está tudo, realmente, a pedir que se pare, que não se faça a mesma coisa que aconteceu noutros lados. E que se tenha outra velocidade nesta forma de devorar a cidade, que não leva a coisa nenhuma.

LC – E quando falou nesta questão do anti-democrático e de aquilo que se está a passar, de algumas pessoas ou de uma visão, a tal visão mono, uma visão muito clara mas que não é integradora de uma multiplicidade e de aquilo que deve ser a diversidade de uma cidade, como é que acha que se pode quebrar isso, ou seja, acha que os projectistas podem ter algum papel relevante, acha que parte só de uma alteração política? Porque esta ideia da cultura da construção, da reabilitação e da preocupação com a tal espessura histórica, deveria ser também uma preocupação dos projectistas, não é? É aí que eles deveriam estar centrados. De qualquer forma eles dão resposta à encomenda privada, há sempre aqui este conflito. Para termos esta atitude radical, poderíamos começar por onde? Pode haver micro-práticas, mas são sempre micro-práticas, nunca alastram e não chegam ao mainstream, não é? Portanto, há bons exemplos, há coisas boas que continuam a acontecer, mas são sempre algumas coisas. A grande maioria das obras, de facto, são obras de reconstrução, de grande demolição, ou seja, poderíamos pensar que se nós controlássemos a demolição, quantificássemos a demolição e se nomeássemos aquilo que demolimos, por exemplo, se calhar podíamos demolir menos. Quando não temos edifícios em zonas de protecção é mais fácil...

MR – É complexo porque isto tem vários factores negativos. Primeiro, o nível mundial, o que está a ocorrer é um adensar de uma forma de ver o mundo, um neo-liberalismo completamente selvagem que passa e trespassa pela comunidade europeia, que dá fundos descomunais, que promove o turismo de massas. A começar logo na Comunidade Europeia, que apoia este tipo de erros que se estão a passar, dando dinheiro, apoiando campanhas de marketing das cidades. Apoiando uma série de estratégias que se viu que deram maus resultados. As regras, por exemplo estes vistos gold, estes fundos internacionais. Também não há da parte da Comunidade Europeia um empenho em acabar com eles, com as offshores, etc. Portanto, é toda uma problemática que passa pela política e pela economia que nós vivemos, que é muito difícil de quebrar. Depois vamos baixando, e vamos parar à forma como se gere a política, hoje em dia, como a política muitas vezes é tão permeável a estes negócios, a estes fundos que vêm e que fazem com que a cidade acabe por reagir, porque são políticas económicas internacionais que fazem com que a cidade acabe por reflecti-las. Eu continuo a achar que as pessoas devem-se envolver mais nas coisas e a única solução que eu vejo é mudarmos o paradigma do individualismo, de estarmos agarrados às nossas redes sociais virtuais e partirmos para uma acção muito mais do colectivo, ao nível, por exemplo, da comunidade, do bairro, das associações de moradores, das associações de protecção do património, quq estão muito enfraquecidas. Depois ttambém b o reforço de estruturas ao nível central que gerem o património, reforço de estruturas ao nível municipal que têm técnicos capazes e que estão também a ser postos de lado nestas grandes acções de renovação da cidade. E rever as questões legais, e ver que há coisas que estão a dar maus resultados. Esta lei do arrendamento, a própria lei da reabilitação. Portanto, são vários aspectos ao mesmo tempo, é difícil, mas eu acho que as pessoas não têm consciência, muitas vezes, do poder que têm se se unirem para travar, nem que seja localmente, e denunciar alguns casos que vão prejudicar as suas vidas. Eu ainda continuo a acreditar que é nas pessoas e no colectivo que as coisas podem mudar. Agora, que estamos numa conjuntura internacional bastante má, no sentido de que tudo tem um valor, tudo tem um preço, tudo é preciso ser rentabilizado, até a nossa vida, não é?

 

Maria Ramalho é Arqueóloga, investigadora na área do património arquitectónico, técnica superior da Direcção Geral do Património Cultural e actual Presidente do Conselho de Administração do ICOMOS-Portugal.