Entrevista com a Arquitecta Teresa Duarte

Vivemos em uma época em que a economia é que prevalece sobre todos os valores e, portanto, as intervenções são muito enquadradas nessa linha.

Lucinda Correia - Como é que se poderia definir o momento actual de transformação de Lisboa? 

Teresa Duarte - Lisboa esteve sempre em transformação. É claro que houve momentos em que houve mais transformação do que em outros e nós agora estamos a assistir a uma transformação grande não em termos dos tecidos, mais em termos do edificado e em termos populacionais. Os tecidos mantêm-se inevitavelmente. Agora, em termos de edificado, obviamente que têm havido muitas alterações porque havia muito edificado que estava em processo de degradação e, portanto, teve que ser intervencionado. Por outro lado, porque nós vivemos em uma época em que a economia é que prevalece sobre todos os valores e, portanto, as intervenções são muito enquadradas nessa linha das sociedades. Não é uma coisa só Lisboa, não é uma coisa só Portugal, não é só da Europa. Eu penso que a cidade em termos de fruição está melhor do que estava há uns anos atrás. Só o facto de nós podermos usufruir de uma ligação com o rio, termos feito as pazes com o rio. Até uns anos atrás, o único ponto de Lisboa que nós podíamos circular confortavelmente que tocava o rio era o Cais das Colunas, não é? De resto estava tudo separado da cidade. E agora não, temos uma franca conversa entre a cidade e o rio e eu acho que isso é muito bom. Depois, perante as transformações em que nós estamos agora, designadamente por causa do surto de turismo que aconteceu em todas as cidades nos últimos anos e, em Lisboa mais premente nos últimos 2, 3 anos, Eu penso que -com a devida reserva porque é claro que podem sempre fazer mais coisas e é claro que podemos sempre definir outras políticas e afectar mais dinheiro para isso, estruturar a intervenção na cidade de outra maneira - penso que há muitas das iniciativas que estão a ser feitas que caminham para fazer uma cidade que seja confortável e fico muito agradada porque as conclusões do relatório da OMT, da Organização Mundial de Turismo, que saiu há 2, 3, 4 semanas, sugere intervenções exactamente nesse sentido. Por um lado, criarem-se percursos pedonais, percursos cicláveis, fazer com que a cidade se desconcentre do centro histórico e seja mais virada para zonas mais a norte. Outra coisa que sugere é que sejam organizados eventos que atraiam muita gente fora deste centro. E, de facto, o problema de Lisboa é esse. Eu trabalho no Campo Grande, vou a Gulbenkian imensas vezes, ando por aquela zona da cidade, vivo na zona Oriental e eu não sofro tanto com a quantidade de turistas como cada vez que venho à Baixa. Então, há que fazer coisas para promover uma desconcentração e acho que uma das maneiras de se promover isso é, para já, criar equipamentos, criar hotéis, etc. nas outras zonas da cidade, mas sobretudo, criar condições de acessibilidade para que as pessoas se possam movimentar e se sintam seguras, não é? E isso parece-me que, é uma das orientações deste relatório da OMT, e parece-me que está a ser conseguido em Lisboa. Volto a dizer, podemos sempre fazer mais coisas e, portanto, há sempre coisas que podem, de facto, descomprimir este centro. 

LC - Depois da era dos gabinetes técnicos locais e da era das sociedades de reabilitação urbana, qual é o lugar das questões locais hoje e qual é a importância de voltarmos a ter questões locais na gestão política da cidade?

TD - O que me parece é que houve um tempo para a existência dos gabinetes e houve uma necessidade da existência dos gabinetes na sua multiplicidade de disciplinas e, portanto, de intervenção no território e nas pessoas e com as pessoas. Hoje em dia, isso já não faz sentido, porque eu acho que a realidade mudou muito. Repara: o que aconteceu na Mouraria, que é um caso à parte, mas cada núcleo histórico é um caso concreto e diferente dos outros, mas na Mouraria, por exemplo, nós tivemos a reforma administrativa que fez com que o território das freguesias mudasse. Muitas competências foram transferidas para as freguesias. Portanto, eu penso que as freguesias podiam dar uma resposta diferente e que de algum modo podiam substituir algumas valências dos gabinetes que podem estar em causa. Por outro lado, temos um terceiro sector fortíssimo, na Mouraria é um caso desses, que tem associações com o trabalho muito dirigido às populações. É claro que esse terceiro sector não tem por obrigação colmatar estas carências, mas, por outro lado, também recebe financiamento da administração local para poder pelo menos lanças estes projectos e começar a desenvolvê-los e depois criar as suas próprias dinâmicas para ter meios próprios para poder dar continuidade a algumas coisas, já que têm isso como vocação.

 

LC - Tendo em conta as grandes operações de reabilitação urbana das quais Lisboa é alvo, que metodologia poderia ser desenhada para fazer face aos problemas, desafios sociais em defesa da cidade? Se por um lado, do ponto de vista do espaço público a cidade está a melhorar e há um conjunto de acções que abrem a todos e, sobretudo, aos próprios habitantes, do ponto de vista do espaço privado e da habitação, a cidade está-se a privatizar ou está-se a fechar de certa maneira porque, como sabemos e devido a estas operações, há uma série de habitantes da cidade que estão a migrar na própria cidade. Isso, se calhar, aconteceu sempre, agora está acontecendo com uma certa dimensão e, portanto, quando falamos de operações de reabilitação urbana, falamos de operações de grande escala em que a dimensão social nem sempre é assegurada. Por exemplo, os hotéis que estão a ser construídos na Baixa com lojas centenárias que são expulsas, que não são integradas. Temos um exemplo aqui, o edifício onde estava o restaurante Baleal que era um edifício camarário e que foi vendido e que não houve essa negociação. Portanto, o promotor não tinha essa visão, a Câmara também não assegurou isso porque não era um restaurante com história. Portanto, há aqui uma espécie de atrito que poderíamos pensar como é que podemos assegurar que há um conjunto de dimensões que estão lá, portanto, há uma preocupação também com quem habita na cidade. Como é que nós podemos, continuando a fazer este tipo de operações, assegurar uma diversidade de usos e de escalas de intervenção?

 

TD – Como disse, os valores que vingam hoje em dia são económicos e, portanto, os velhos tempos em que se defendiam mais valores sociais, de inclusão e manutenção das populações estão ultrapassados. Também por alguma razão estão ultrapassados. Em relação à cidade, eu penso que é necessário que possa ser garantido que determinadas actividades e determinadas pessoas possam continuar a usufruir da cidade. A questão é sempre a mesma: é o critério para definir quais são as actuações que podem ser feitas. Nós temos instrumentos democráticos fantásticos, que nem todos os países têm, que são os planos, feitos por equipas multidisciplinares que são postos à discussão pública e, portanto, o que deles resulta, teoricamente, é uma linha de actuação e um regulamento que foi alvo de escrutínio publico. Porém, temos perfeita noção que se trata de uma linguagem muito hermética que nem todas as pessoas conseguem entender. Portanto, há muitas coisas que escapam. De qualquer modo, o que me aprece é que é fundamental os critérios, mas é fundamental também que as pessoas tenham noção da responsabilidade que têm porque, por exemplo, as lojas com história.... Foi aberto um concurso, uma frente para classificação das lojas, nem todas concorreram, principalmente porque têm desconfiança em relação a isso, mas só perante a iminência de estarem inseridas em um edifício que vai ser demolido e saberem, então, que têm que fechar é que fazem uma proposta de classificação. Nós, cidadãos, temos obrigação por lei de estar informados, o que é uma coisa um bocadinho perversa, mas efetivamente as pessoas têm que ter essa noção porque senão não podem fazer valer os seus direitos.

LC - Como é que vê a cidade de Lisboa daqui a dez anos? 

TD - A minha resposta está mais ou menos subjacente naquilo que já disse. Não posso dizer como é que vai ser porque as coisas podem mudar de um dia para o outro e as coisas hoje em dia mudam muito depressa, mesmo sem haver grandes acontecimentos. Se tivermos um atentado ou qualquer coisa, é claro que as transformações ficam galopantes, mas é muito difícil acompanhar. Independentemente disso, volto a dizer, fiquei muito contente com o relatório da OMT porque me parece que a cidade de Lisboa está actual em relação às respostas que pode dar. Parece-me que nós estamos a fazer um bom caminho actual relacionados às orientações que há, sobretudo a sustentabilidade porque é muito importante.... Nem todas as cidades estão a organizar-se desta maneira e acho que é uma frente muito importante e muito relevante que Lisboa tem. Seguindo a evolução, sem brechas, sem imprevistos, parece-me que o turismo vai ser uma constante em todas as cidades, sobretudo as capitais europeias e Lisboa, inevitavelmente, vai ter mais turistas. Se nós pensarmos nas orientações que estão a ser respeitadas parece que Lisboa pode organizar-se de maneira a colmatar, minimizar, mitigar esses efeitos que o turismo tem. Na fase em que nós vivemos, não se pode contar tanto com o Estado e sector local para criar, por exemplo, mais equipamentos, que fazem muita falta. Portanto, temos que contar com a organização do sector privado para poder colmatar essas falhas. Eu penso que, em Lisboa e em Portugal também, mais em Lisboa que eu conheço melhor, há muita falta de equipamentos vocacionados para a terceira idade. Sabemos que, por exemplo, nos bairros históricos há imensa solidão entre os idosos. Penso que fazia muita falta haver mais equipamentos. É claro que competia à administração central e local fazê-los, haja meios para isso, mas acho que um problema muito grave que Lisboa vai ter nos próximos tempos. Pensar que uma pessoa morre sozinha em casa e não tem acompanhamento nenhum, deve ser aflitivo para a pessoa. Há muito trabalho pela frente. Eu penso que em relação às outras questões a cidade de Lisboa tem um caminho e vai desenvolvendo as coisas e as iniciativas todas necessárias para trilhar este caminho, mas há sempre uma parte de que está em falta. E acho que é muito preocupante.

 

 

Teresa Duarte é Arquitecta na Câmara Municipal de Lisboa.