Entrevista com a Historiadora Joana Cunha Leal

Uma transformação tão acelerada e a uma escala tão grande excede a normalidade. É eventualmente perigosa se aquilo que promove é a normalização, se propõe alterações sociais que, eliminando a diferença, eliminam também camadas populacionais mais frágeis.

Lucinda Correia - Como é que poderia definir o momento actual da transformação de Lisboa?

Joana Cunha Leal - O termo que me ocorreu é que o momento é pesado. É um termo que os espanhóis usam e ocorreu-me porque pesado também quer dizer que é um momento importante em que há muita transformação. Uma das coisas que queria era não ter um discurso absolutamente negativo em relação à transformação da cidade. É normal que as cidades se transformem, é normal que elas se alterem. Uma cidade que não se transforma é uma cidade morta. É uma cidade “museologizada” que é a negação absoluta do que é uma cidade. O que talvez exceda um pouco a normalidade é a aceleração, por um lado, da transformação e a escala da transformação que tem muito impacto. Diria que nós estamos a viver um momento crucial da cidade de Lisboa com transformações ao nível do espaço público e do espaço privado, daquilo que é o parque edificado da propriedade privada. Sendo que há duas questões, que para mim importantes quando pensamos estas transformações: a primeira é a ideia de normalização. Uma transformação tão acelerada e a uma escala tão grande excede essa normalidade e é eventualmente perigosa se aquilo que promove é a normalização, se mata a diversidade da cidade, se elimina a diferença e, por extensão, se promove a gentrificação da cidade, se propõe alterações sociais que, eliminando a diferença, eliminam também camadas populacionais mais frágeis. E parece-me que aquilo que vemos, que estamos a viver hoje em Lisboa incorre nestas duas situações e que isso me causa bastante preocupação não apenas como historiadora, mas também como moradora e utente da cidade e particularmente moradora do centro histórico que é onde a pressão está a sentir-se mais forte, embora ela na realidade já se tenha espalhado.

LC - E, depois de muitos anos, a aguardar a reabilitação urbana, as obras chegaram e esse grande impacto está cá. Quais as eventuais implicações das operações de reabilitação urbana em curso na memória da cidade futura por um lado, e quais os possíveis impactos na história da construção de Lisboa?

JCL - Bom, algumas das alterações têm a ver com aquilo que eu tinha dito anteriormente. São alterações graves e eventualmente menos desejáveis ao nível da gentrificação e daquilo que nós sabemos hoje que se passou, por exemplo, com o tecido social de Alfama. Portanto há profundas alterações no tecido social da cidade e isso incorre, de facto, no perigo da criação, e era isso que eu queria dizer cm gentrificação, com a criação de um espaço urbano para privilegiados, que elimina a diferença. Portanto, esse é um dos impactos da reabilitação, sempre foi a coisa mais difícil da reabilitação urbana. Se nós fizermos a história do património urbano e a história da reabilitação urbana, é muito fácil de perceber que o efeito da gentrificação só se elimina a custo de uma fortíssima intervenção do Estado.

Preocupa-me muito por exemplo a intervenção que vai ser lançada no Martim Moniz. Acho que é muito, muito preocupante o modo como se vai intervir naquele espaço porque é um espaço povoado de imigrantes. É preciso respeitar essa diversidade. Bom, em relação aquilo que me perguntava sobre a memória da cidade para a cidade futura,  nestes processos de reabilitação, uma das coisas que me preocupa mais é que esta transformação possa ocorrer, por um lado desregulamentada, mas também desregulamentada no sentido em que não se acautela documentação dos processos de transformação. Portanto, eu não digo necessariamente as grandes intervenções do espaço público porque essas são necessariamente documentadas, mas as intervenções no espaço habitacional, em edifícios que são edifícios da história da construção de Lisboa. Isso é uma perda para a história da construção de Lisboa vista do ponto de vista do historiador. Eu acho que a transformação nos espaços de habitação é, muitas vezes, necessária, desejável. As pessoas hoje têm que viver com condições muito diferentes, como é evidente, e muito melhores, ainda bem. Mas que essas intervenções possam ter a preocupação de documentar aquilo que era o existente. E essa questão tem pelo menos duas vertentes: uma é a da preservação do próprio edifício, porque há intervenções que são absolutamente lesivas da estabilidade e do edifício. Portanto há um lado técnico e, depois, há um outro lado mais ligado justamente à história da arquitectura, à história da construção e à história dos modos de habitar e isso é completamente ignorado.

LC - Este momento pode equiparar-se a um outro momento de transformação da cidade?

JCL - Por um lado sim e por outro lado não. O lado sim tem haver com a aceleração e a escala, portanto a aceleração da transformação e a escala da transformação são talvez relacionáveis com a reconstrução pombalina porque há vários pontos que podemos pensar nessa aproximação. O lado não é evidentemente a reconstrução pombalina decorre de uma catástrofe natural. Foi um terramoto, seguido de um maremoto, seguido de um incêndio, seguido do bota-abaixo que já foi demolir, retirar os escombros. Portanto, evidentemente que o momento de transformação que nós vivemos hoje não decorre de nenhuma catástrofe felizmente, embora Lisboa seja sempre ensombrada pela possibilidade de uma nova catástrofe, mas depois há alguns pontos que eu acho que é interessante até pensar essa aproximação e talvez até aprender alguma coisa com a história e com os processos de reconstrução pombalina e com o cuidado que houve em associar um projecto de renovação urbana, portanto de reconstrução integral da cidade existente, com um projecto social, que era um projecto de integração em grande medida, apesar de ser extraordinariamente hierarquizado. Era um projecto de algum modo de alguma integração das várias camadas sociais no sentido de que quem ia ocupar as casas nobres de um prédio pombalino não é a mesma pessoa que vai ocupar as águas furtadas. É outro público, e os alugueres são também distintos, e o espaço todo ele é distinto.

LC - Isso é muito curioso, que é de certa maneira a dimensão pública da fachada cenografada é muito estável e repetitiva, não é? E um bocadinho monumental, mas depois dentro, por trás há essa hierarquização e essa finura, essa diferenciação.

JCL - Mas a própria fachada também é bastante hierarquizada, não é? 

LC-  Sim, é hierarquizada mas há uma certa monumentalidade, uma certa estabilidade na leitura do todo e, depois, lá dentro, há uma espécie de organização quase natural. Do ponto de vista político e do ponto de vista da acção há uma monumentalidade, há um investimento e uma leitura homogeneizada também, mas de conjunto e isso não implica que não haja uma diferenciação e uma integração desses públicos e dessas classes que, mal ou bem, funcionou na altura. É interessante perceber como é que se pode integrar as várias dimensões destas grandes acções, porque são acções de uma certa escala. Estou a pensar agora nas lojas da baixa, das pessoas que estão a ser expulsas e das lojas que vão fechando porque se fazem hotéis e dessa capacidade integrativa. Estava aqui a buscar relações com o presente....

JCL - Em relação ao presente, acho que é importante nós não esquecermos que a baixa estava completamente abandonada. A Baixa apesar de tudo não estava de todo na condição, por exemplo de Alfama, ou da Mouraria. A baixa não tinha moradores... Portanto, não havia ninguém à noite naqueles edifícios, não se morava ali e o caso é mesmo particular. E era uma situação dramática, não é? E agora evidentemente abre margem a toda a transformação. Não é seguramente ali, ou não é maioritariamente ali, que vemos os velhinhos a serem pressionados para sair ou as pessoas a serem pressionadas para sair. Retomando, então, a pergunta.... Outras questões que se colocam nesta comparação é que justamente o que se passa hoje na realidade também são processos de reabilitação, mas que ocorrem dentro de um território urbano que está estabilizado, portanto, não é um ensanche. Não estamos a pensar num alargamento da cidade, o que estamos é a intervir num território consolidado, sendo que, neste caso, de acordo com os princípios da reabilitação.... Há outra semelhança que a mim me parece curiosa: a reconstrução pombalina é a primeira vez em que, também à escala da cidade, se percebe que a propriedade urbana é um bem capitalizável. Portanto, a construção do prédio de rendimento estabelece uma relação do proprietário com a cidade que faz da propriedade um bem capitalizável, segundo uma logica de rendimento. E isso também me parece que tem alguma semelhança com a escala hoje da pressão, da valorização da propriedade que agora já não é uma propriedade predial, mas estamos quase a falar da propriedade horizontal.

LC- Eu faço sempre esta comparação com as acções em bolsa porque, de repente, já não é aquilo que é o terreno ou o dinheiro concreto, é uma virtualização que tecnicamente se pode fazer e depois, legalmente se constituiu, não é? Portanto a horizontal é uma invenção também de desresponsabilização do Estado. Porque, no caso da Lisboa Pombalina é uma visão de Estado e controlado pelo Estado. Portanto, há um controlo quase absoluto do que se está a fazer. Agora, há uma tendência, há uma política pública que é muito abrangente e depois há actores privados que se articulam com essa política e o resultado disto é uma coisa muito mais descontrolada. 

JCL - Neste momento uma das preocupações é justamente uma desertificação da cidade que é difícil de lidar porque, na realidade, Lisboa estando cheia de gente não tem habitantes. Não tem cidadãos. Explora-se e especula-se em torno das propriedades que agora são as casas, apartamentos, etc., mas muitas vezes para ter uma população que é absolutamente flutuantes que não tem laços com a cidade. Estamos a ver os desequilíbrios de uma cidade que me preocupa, na realidade, porque deixa de ter os seus próprios habitantes e quem a cuide. Perde absolutamente massa critica, perde força política, perde tudo...  Mais uma vez eu acho que é preciso evitar o tom dramático porque eu acho que a situação era dramática no que estava antes. Agora o drama é completamente diferente, mas, de facto, começa a ser muito difícil eu manter esta minha serenidade. Eu já lhe disse que moro no centro histórico. A última reunião de condomínios, que tive agora mesmo venho traumatizada porque todos os meus vizinhos se vão embora. Todos. Tudo se vai embora. Não aguentam... não querem... São tentados pelo valor especulativo das casas. Muitas vezes eu penso se num cenário de crise, o que é que vai acontecer. Porque uma das coisas que acontece imediatamente é que congela o turismo. Basta a mínima coisa acontecer em Lisboa para isso ter repercussões muito, muito significativas.

LC - Penso que um dos problemas destes movimentos maciços. Assim em grande é quando nós estamos numa monocultura. E aí acho que há uma grande diferença do projecto iluminista. Critique-se ou não o projecto iluminista, mas há uma tentativa de integração de uma diversidade e, logo com os ofícios, percebemos que acontece um conjunto de coisas. Isto são saberes e isso é um conhecimento que é uma mais-valia e é nosso, é de uma cultura e, portanto, isso é fundamental. De uma certa maneira, com um conjunto de regras, enfim, foi como foi pensado na altura. O que se assiste agora é uma repetição, portanto, hotéis, hotéis, hotéis.... E perde-se esse espaço para essa diversidade e sobretudo, para outras escalas de investimento. E eu agora vou um bocadinho já para a pergunta final de como é que vê a cidade de Lisboa daqui a dez anos? 

JCL - Eu acho que não é muito da nossa tradição ou eu nunca dei muito conta, ou talvez tenha sido eu que tenha estado mais distraída, que nós tenhamos entre nós, particularmente em Lisboa, uma tradição de intervenção cívica e de movimentos cívicos. E eu acho que as pessoas estão muito mais conscientes e amantes da cidade. Lisboa foi uma cidade muito mal-amada durante muito tempo. Era associada a local de trabalho e o que era bom morar noutro sítio para esquecer Lisboa. Eu acho que Lisboa é mais amada agora. Talvez porque sentimos a transformação e esta transformação é tão avassaladora e tão rápida. E, portanto, talvez haja esse levantamento e essa vontade de pensar melhor o futuro da cidade e isso é muito positivo. Vejo as pessoas mobilizadas, vejo os cidadãos a mexerem-se como aquela coisa do jardim do caracol da esperança da Graça, que foi um projecto muito participado. Achei maravilhoso ter acontecido, as pessoas darem-se ao trabalho de defender aquela parcela da cidade. E, portanto, eu acho que há sinais muito optimistas porque é isso por exemplo que eu acho que defende cidades como Barcelona em que essa tradição dos movimentos cívicos é muito expressiva em todo o lado. Eu acho que não vamos recuperar a cidade que era, mas também não sei se queremos recuperar a cidade que era e, portanto, o que eu acho é que há margem para aqueles que gostam de Lisboa reivindicarem uma Lisboa de cidadania diversificada. Uma cidadania que inclui justamente as comunidades emigrantes, que inclui toda a diversidade que possa. A diversidade é sempre uma riqueza imensa. Se calhar isto não é a cidade que vai ser, mas é a cidade que eu gostava que fosse. Porque há coisas que estão efectivamente melhores, em melhores na ocupação do espaço público, no desenho do espaço público, na promoção de algumas pequenas iniciativas, como as "giras" como as bicicletas por exemplo...Portanto, não é acabar com os turistas, é conseguir que a cidade acolha e acarinhe os seus habitantes de modo a sobreviver e a proteger a áreas mais frágeis, como é o caso do centro histórico. E era bom que houvesse de facto alguma legislação que pusesse um fim às possibilidades de especulação total e de total conversão dos edifícios para Airbnb e de coisas do género. Portanto, eu acho que há áreas em que era bom que haver uma intervenção mais cuidada, porque senão ficamos outra vez com uma cidade fantasma de habitantes flutuantes.

 

 

 

Joana Cunha Leal é Professora Assistente do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, onde ensina nos cursos de Graduação e Pós-graduação em Arte, Teoria da Arte e Historiografia do século XIX e início do século XX. O seu trabalho recente privilegia o estudo dos modernismos ibéricos e da vanguarda.