Lucinda Correia - Como é que poderia definir o momento actual de transformação de Lisboa?
JA - Eu acho que nós estamos a viver um momento fantástico e eu tenho imenso prazer durante a minha vida de estar a viver este momento. A minha geração que começou a ser activa nos anos oitenta, estávamos todos no fim da adolescência, entramos também na Universidade nessa altura e, durante muito tempo, Lisboa foi sempre uma cidade adiada. Sempre me pareceu que havia imensas coisas para fazer e que havia um grupo de pessoas aqui em Lisboa que puxavam por esse fazer, mas, na verdade, eu creio que éramos poucos. Eu sempre viajei muito e sempre que chagava queria participar, queria fazer e parece que neste momento há uma coisa interessante que é as coisas já acontecem. E, surpreendentemente, acontecem sem eu ter pensado nelas e sem o grupo mais próximo de amigos estar a pensar nelas. Antigamente as coisas aconteciam e eu sentia-me sempre mais ou menos envolvido, tinha uma certa proximidade. Agora, também por ser mais velho, acho que as coisas estão a acontecer e estão a acontecer imensas coisas interessantíssimas. Eu acho que para quem está a viver a cidade neste momento, principalmente os jovens, as pessoas que têm dezoito, vinte anos, têm uma oferta incrível de coisas para fazer e de festivais, de cinema, coisas a acontecer em jardins. Na altura em que eu tive essa idade coisas eram mais escassas. E eu acho que por isso para os cidadãos de Lisboa, para as pessoas mais jovens, e mesmo para todos os outros mais velhos, é um momento fantástico.
LC - Em Lisboa e no Porto nunca os arquitectos produziram tanta mais valia financeira para o sector imobiliário. Qual é o lucro? Qual é o seu lucro nesta equação e qual é afinal o papel da arquitectura neste processo?
JA - Nós gostaríamos de ter feito essas contas, e nós tendencialmente aqui no atelier posicionamo-nos cada vez mais como uma empresa, somos dez e algum mais. É uma estrutura que precisa de dar dinheiro para pagar os salários ao fim do mês a todas as pessoas, para todas essas pessoas viverem relativamente bem e gostaríamos muito de ainda pagar mais, porque o que pagamos é claramente insuficiente para a qualidade do trabalho que se desenvolve, mas queremos nos organizar melhor para poder fazer um serviço melhor, mais rápido, mais eficaz. Interessa-me produzir trabalhos a diferentíssimas escalas. Nós actuamos quer sobre remodelação de apartamentos, quer sobre coisas mais pequeninas ainda, intervenções parciais, espaço público, inclusivamente intervenções efémeras que durem só uma tarde. São coisas que nós gostamos imenso de fazer. No entanto, isto tem que gerar dinheiro. Todas estas pessoas são apaixonadíssimas por aquilo que fazem, mas precisam de estar bem, precisam de fazer viagens, precisam de ir a restaurantes bons, porque também faz parte da investigação de um arquitecto. Ter acesso a produtos bons e saber utilizá-los e em determinadas circunstâncias. Quando eu falo bons, podem ser mais caros ou menos caros, mas temos que ter acesso a isso tudo para depois poder optar e utilizar. Nós, como investigadores, precisamos de ter acesso a essas coisas e eu sinto que para nós há muitas coisas que nos estão vedadas. Estão-nos vedados os hotéis de luxo, estão-nos vedados os restaurantes de luxo, estão-nos vedadas imensas coisas porque nós, como arquitectos, não conseguimos lá ir porque não temos dinheiro para o fazer. E, portanto, temos que funcionar como uma empresa, temos que melhorar este sistema, não temos qualquer dúvida. Posicionamo-nos muito perante os clientes e perante a comunidade, que somos os valorizadores do património. Aliás, é uma frase que nós temos por baixo dos nossos e-mails, ou pelo menos tínhamos: “Nós valorizamos o seu património”. Para nós isso é completamente claro. E quando os clientes vêm cá, nós tentamos explicar. Na primeira reunião nós explicamos qual é o nosso papel, qual é o nosso processo, mostramos o que é um estudo prévio a nível de desenhos, mostramos o que é um projecto de licenciamento a nível de desenhos, mostramos o que é um projecto de execução a nível de desenhos e mostramos o que é que é um caderno de encargos. Tudo aquilo que nós fazemos também é para chegar a um caderno de medições e orçamentos, para que eles depois possam medir tudo e quando vão para a obra, saberem exactamente o que é que vão gastar. Também dizemos que aquele caderno das medições é fundamental para eles poderem optar e dar a três ou quatro empresas em que o documento tem que ser o mesmo para todas as empresas responderem exactamente à mesma coisa. Nós dizemos que isso é fundamental. É uma enorme mais valia para eles saber exactamente quanto é que vai custar cada coisa que vai entrar na obra. Seja uma tábua, seja um azulejo, seja um lavatório, seja um espelho. E por isso, eles podem ver, quantificar tudo a nível de valor. E eu acho que eles percebem, percebem depois porque é que nós fazemos um projecto de execução. Não tenho dúvida também que os honorários que nós agora estamos a fazer são mais bem aceites pelos clientes, ou futuros donos da obra, do que eram há uns tempos. Mas está nas nossas mãos também de fazer jus a esse novo entendimento. Nós temos que melhorar também como classe. Eu acho que as novas gerações vão ser melhores que eu sou agora. Acho que vão ser mais organizadas, vão responder mais e de uma forma mais eficaz às coisas todas, aos telefonemas, aos e-mails, às reuniões, que é realmente fundamental que nós sejamos organizados e de demonstrar que aquilo que os donos de obra/clientes estão a pagar.
LC - O que pensa das obras de reabilitação que estão a acontecer em Lisboa? Poderemos falar de uma nova cultura da construção? E estamos a referir-nos sobretudo às grandes operações de reabilitação urbana, grandes demolições, enfim...
JA - Eu tenho um problema que é: eu olho mais para as coisas que gosto do que para as coisas que não gosto. Portanto, as coisas que não gosto muitas vezes continuo em frente, não quero saber. E tendo a parar e tendo a fixar o meu olhar nas coisas que gosto. Acho que começamos a sair da crise por volta de 2014, foi há muito pouco tempo. Portanto, durante três ou quatro anos falava com imensos arquitectos e muitas vezes ouvi que já não somos precisos, a nossa profissão vai acabar. Os ateliers fecharam, mas as pessoas estavam convencidas e os jovens deixaram de ir para as universidades também. Passaram a ser muito menos. E porque nenhum pai e mãe queriam um filho a estudar arquitectura porque achavam que era o desemprego. Eu acho que neste momento estamos com muito trabalho e parece-me, e tenho dito isto várias vezes, ainda bem que isto aconteceu agora. Porque se tivesse acontecido há vinte anos, esta coisa da dinâmica toda de Lisboa, se tivesse acontecido há vinte anos eu acho que nós não estávamos preparados para o fazer. Eu acho que o desastre ia ser muito maior. Eu acho que há óptimos arquitectos neste momento. Há óptimas pessoas a sair das escolas, há óptimos arquitectos jovens que estão a fazer trabalhos com uma competência incrível e que estão a conseguir fazer as coisas mantendo muita coisa. Isto é, intervir muito pouco. Se tivesse sido há vinte anos, quando todos nós achávamos que arquitectura é construção nova ou arquitectura relevante é aquela que aparece toda de repente, isto teria sido um problema. E, portanto, acho que as Universidades estão a preparar bem porque estão a sair óptimos profissionais. Não sei se vai ser assim daqui a uns tempos, mas até agora como houve bastantes professores que vêm da prática para ensinar, acho que os alunos saem bem.
LC - E têm esse interesse também, de perceber se faz ou não sentido demolir e porquê, afinal são questões tão singulares.
JA - Nós fizemos muitos, quer em Évora quer em Lisboa, quer na Universidade Autónoma quer na Universidade de Évora, fazemos muitos e muitos projectos em que temos uma área de intervenção e muitas vezes, é dado um programa e os alunos decidem o seu sítio. Muitos vão para situações de construção totalmente nova e outros vão para situações de reabilitação em que fazem muito pouco. E outros vão até para espaço público e nós não fazemos a mínima distinção do que é que é construção nova ou reabilitação. Para mim na arquitectura há sempre pré-existências, seja uma paisagem, seja uma topografia, seja um terreno.
LC - Como é que vê a cidade de Lisboa daqui a dez anos?
JA - Eu espero que Lisboa seja uma cidade cada vez mais diversa. Eu acho que Lisboa tem essa vocação desde sempre. Nós tivemos o século dezasseis e o século quinze com muita diversidade populacional, tínhamos pessoas de todo o mundo... Não sei se o século dezanove foi assim, mas eu acho que nós passámos por uma altura no século passado que nos fechamos completamente ao mundo e que, praticamente, deixamos de ouvir falar estrangeiro, mas acho que Lisboa, por natureza, tem essa vocação cosmopolita e global, que neste momento está a acontecer. Se podemos criar postos de trabalho para todas estas pessoas que vêm, e etc.? Espero que sim. Acho que Lisboa tem uma matriz cosmopolita e global, portanto é uma boa base para que se torne mais diversa, heterogénea.
LC - E singular também, não é? Porque é uma cidade singular.
JA - Eu acho que Lisboa é muito forte, porque tem uma topografia muito forte. Com todas as críticas que se possam fazer, acho que a DGPC também protegeu bem Lisboa ao longo destes trinta ou quarenta anos porque a cidade na sua globalidade, na sua percepção geral, se mantém. Aqui na Rua Gilberto Rôla, onde nós estamos, não é que não houvesse vontade de deitar estes edifícios todos abaixo há muito tempo, mas não aconteceu porque a Direcção Geral dos Monumentos Nacionais, Antigo ISPAR, fez com que isto se fosse mantido. Porque se não isto tinha ido tudo ao ar, e muitas coisas da cidade. Neste momento têm um trabalho fundamental porque a vontade dos promotores é tão grande, de mais e de mais, que há uma espécie de pressão sobre os arquitectos para irem sempre em frente, porem mais pisos, mais área e destruir. Nós já fomos muitas vezes confrontados com alguns trabalhos de ir à DGPC e dizer "bem, ainda bem que vocês estão aqui, porque se não..." isto era muito complicado. Muitas vezes também o que se está a passar neste momento é que os promotores, os que estão a organizar e os que contactaram os arquitectos não são o cliente final. Porque o cliente final é um fundo, um fundo invisível. O promotor é o gestor e há uns bem formados e mais competentes e mais sensíveis, outros menos. Há outros que por e simplesmente só querem o que fundo quer. Defendem essa posição do fundo. O fundo está a ver uma quantia invisível, que é dinheiro, não é? Está lá um prédio, mas para eles aquilo é dinheiro. E, portanto, o que é que acontece: claramente há coisas fantásticas a acontecer em Lisboa e há coisas menos fantásticas a acontecer em Lisboa. Lisboa foi comprada por fundos com muito poder económico, que simplesmente não conhecerem aquilo que têm porque estão do outro lado do mundo e porque as propriedades significam apenas dinheiro. Por isso é que também estamos a ser confrontados com uma questão que é: fazermos projectos que valorizam tanto a propriedade que, com projecto a meio ou em licenciamento, o fundo já está a vender a outro fundo. E, portanto, nós não sabemos nunca, quando são estas coisas grandes, se vai acabar ou se vai mudar de mãos. E quando muda de mãos também não sabemos o que é que vai acontecer. É muito dinâmico e, por vezes, penalizador para os arquitectos. Mas, as cidades são estas coisas dinâmicas em que o equilíbrio é difícil. São sempre processos em desequilíbrio. Eu acho que é uma própria...
LC - É uma tensão, sempre. Não é?
JA - É. Isso é que é uma cidade. De repente estão a acontecer coisas que não fazia a mínima ideia que poderiam alguma vez vir a acontecer. E, depois, quando parece que aquele assunto se está a resolver, aparece outro assunto que é, de novo, desestabilizador.
José Adrião é arquitecto, fundado do Atelier José Adrião Arquitetos. Desde 2001 leciona no Departamento de Arquitetura na Universidade Autónoma de Lisboa.