Lucinda Correia - Paulo Street, como é que poderia definir o momento atual de transformação de Lisboa?
Paulo Street - Eu acho que Lisboa está a viver um momento único sua transformação. Não só a nível da transformação da nossa área arquitetónica e do objeto construído, mas também muito a nível cultural e a nível da ideia de se viver numa cidade. As pessoas estão a desenvolver novos conceitos de vivência na cidade, novos paradigmas do que é viver na cidade. Portanto, acho que se estão a criar uma quantidade de oportunidades de viver e fruir de forma diferente a cidade. Algumas delas, se calhar, nem sequer estão a ser muito bem enquadradas, mas estão a ser muito boas para Lisboa e para as cidades que estão também a conseguir a implementar algum tipo dessas alterações, nomeadamente as alterações a nível de transporte, introdução da bicicleta. Privilegiar o andar a pé e o andar de bicicleta em detrimento do carro é para mim aquilo que, de facto, marca o eixo dorsal das várias intervenções urbanas que estão a ser feitas em Lisboa. Intervenções do espaço público e que depois também acabam por dar motes e por dar informação para os próprios edifícios, para os próprios programas e para as próprias novas centralidades que são criadas. O coração da Alfama era inacessível quando o único meio de transporte que tínhamos era o carro. Hoje em dia, não. Hoje em dia, entre tuk tuks, bicicletas e andar a pé e percursos de visitas, a Alfama é completamente visitável. Coisa que não era há 20 anos atrás.
LC - Em Lisboa e no Porto nunca os arquitetos produziram tanta mais-valia financeira para o sector imobiliário. Qual é o seu lucro nesta equação e qual é, afinal, o papel da arquitetura?
PS - Eu não se isso é assim tão verdade que nunca tenha havido tanto lucro ou que tenhamos produzido tanto lucro. Acho que já houve, quer em Lisboa, quer no Porto, mas em Lisboa isso é patente e é a cidade que nós conhecemos melhor, houve grandes planos de expansão, grandes zonas que criaram mais-valia. Qualquer grande área de reabilitação ou grande plano de intervenção cria mais-valias brutais para o Capital, para os investidores privados e para os investidores públicos. A Expo foi a transformação completa de uma área que não tinha valor quase em termos comerciais para criar uma zona que durante alguns anos foi uma das zonas mais caras de Lisboa. E quem diz isso, diz as intervenções da alta Lisboa que foram anteriores a essa fase, as intervenções, ainda mais para trás, Benfica, e das periferias. O que acontece hoje em dia é que se voltou ao centro da cidade e ao património já edificado. Pela tal alteração de paradigma da forma de as pessoas verem a cidade e de verem o habitat da cidade e também, por um lado, o turismo que foi uma situação que já estava estudada há muito tempo e que se sabia que Lisboa tinha uma grave carência de camas. E durante alguns anos, praticamente, o trabalho que nós tínhamos eram hotéis. Estas novas realidades estão aliadas a outra questão que tem a ver com as questões políticas e com as questões de política fiscal. No fundo, as oportunidades que nós tivemos ao longo dos anos em Lisboa e que tivemos com este pulo agora em termos de construção tem muitas vezes a ver com a aplicação de políticas fiscais. Nos anos 1980, a Espanha criou uma política fiscal muito agressiva ao capital e os espanhóis compraram a Avenida da Liberdade toda e da Avenida da República. Não é um fenómeno de agora, é um fenómeno que já era conhecido na nossa cidade, só que o investimento era feito e o capital foi recuperado. A diferença hoje em dia é que não temos eixos, temos grandes zonas, grandes bairros, em que todos eles têm o seu papel, todos eles têm a sua função. E não só eixos, não só praça ou só o Marquês de Pombal. Neste momento, a Rua Joaquina no meio da Pena tem tanto ou mais valor do que a Av. da Liberdade porque tem outras funções e outras especificidades. No fundo está se a atribuir função e mais-valia a uma quantidade de património e de construção que não tinha função, nem tinha mais-valia. Quando houve o boom da procura de património em Lisboa, esse boom também coincidiu com a entrada em Portugal ou a saída de França, de uma quantidade de pessoas que tinham muito património, muito dinheiro e que, de repente, o estado francês decidiu que quem tinha acima de 2 milhões de euros pagava 70% de impostos, todos os anos. Portanto, as pessoas retiraram o dinheiro de França e vieram para Portugal que era mais barato. O metro quadrado em Lisboa continua a ser mais barato do que em Londres, do que em Paris ou Madrid, ou do que em Barcelona, ou qualquer cidade principal da Europa. E, portanto, isso faz com que as pessoas venham investir aqui. Estamos, como é óbvio, também a viver numa altura de muito trabalho e de muito investimento e de até algum reconhecimento no nosso trabalho, mas não estamos a trabalhar com os investidores estrangeiros, felizmente ou infelizmente, foi o que aconteceu, não foi procurado, não é nenhuma política, estamos a trabalhar com grupos portugueses. Temos colegas que às vezes também ajudamos e fazemos parcerias que trabalham também com muitos grupos franceses e com particulares franceses e são, de facto, nesse momento, à parte de pessoas dos países orientais e do Brasil, que têm uma importância muito grande não tanto em Lisboa, mas fora de Lisboa, em Cascais, em linha, em Oeiras, em Sintra... Como nós também não sentimos muito o lado da crise, ou seja, os nossos clientes tinham capacidade para continuar a investir calmamente no património que tinham, no fundo continuamos a seguir que linha que andávamos. Mas, acho que não é uma loucura em termos de trabalho.... Em termos de trabalho, é, em termos de mais-valia para os investidores, é. Nós somos sempre o lado fraco da equação, sim, somos. Nós, os engenheiros, os arqueólogos. Há um reconhecimento que nós somos necessários e que nós temos uma palavra a dizer não só pela via legal, mas também pela via cultural e arquitectónica, da qualificação dos espaços, também muito a custa de termos investimentos estrangeiros onde a cultura arquitectónica, por norma, é bastante superior à cultura arquitectónica em Portugal. Portanto, aí também a procura ser maior, mas em termos de mais-valia, nós precisamos ser muitas pessoas para fazer os trabalhos. Andamos sempre neste equilíbrio ou desequilíbrio, digamos, somos sempre o lado mais fraco da equação.
LC - O que pensa das obras de reabilitação que estão a acontecer em Lisboa? Poderíamos falar de uma nova cultura da construção?
PS - Eu não sei bem o que é a cultura da construção. Sei que estamos felizmente a voltar a criar alguns intervenientes no património com cada vez mais conhecimento e mais capacidade para cada vez fazer melhor. Voltam a existir pessoas a trabalhar os estuques, as madeiras. Continua a ser difícil encontrar pessoas que façam o trabalho bem, mas isso voltou a ser valorizado há uns anos atrás e neste momento começa a haver empresas especializadas em património e que trabalham muito bem o património e que têm as ferramentas e o know how para nos ajudarem nesse processo. De qualquer forma, mesmo em termos das obras de reabilitação urbana mais do lado do espaço público, acho que tem havido progressos enormes. Existe, de facto, uma política do abrandamento da velocidade dentro da cidade, quer seja com a alteração do meio de transporte, quer seja pela forma como a cidade é vivida, os espaços verdes, os tratamentos que, no fundo, assistimos, quer na 24 de Julho, quer na Avenida da República, quer no Saldanha. É um trabalho notável em que não é só reduzir as faixas de circulação, mas é todo um novo paradigma de como as vias devem ser organizadas e de como a cidade deve ser vivida pelas pessoas. E a verdade é que após o impacto inicial, que é sempre negativo, as pessoas são muito adversas à mudança hoje em dia, acho que não há ninguém que não diga que hoje está melhor do que estava há dez anos atrás ou há 20 anos atrás. A cidade está mais vivida, tem mais gente no meio da rua, tem mais pessoas nas esplanadas, tem aquilo que nós, às vezes, quando íamos a outros países notávamos e dizíamos "por que que isto não é possível em Lisboa?" Havia a desculpa que era do sol ou que era do calor... Não era. Era precisamente porque a cidade não estava preparada para receber essas pessoas, nem para lhes dar conforto na sua estadia e na sua fruição da cidade. Em relação à cultura da construção, eu acho que continua a haver muita intervenção no património sem que seja dada a importância, ou sem que seja dada a requalificação cultural que o património merece. A velocidade com que as coisas se processam, ou a velocidade que os projectos necessitam, quer em termos do seu desenvolvimento, quer em termos das suas aprovações, das legalizações de todas as taxas e tudo que envolve o processo da construção, em Lisboa, continua a ser muito complexo. E essa complexidade faz com que continue a existir uma grande intervenção que, além de não ser controlada ou de não ser efectuada por arquitectos, não acrescenta ou não cria mais-valia ao património. Ou seja, são intervenções que não têm densidade, que não acrescentam valor cultural ou patrimonial ao património e, pelo contrário, lhes até retiram bastante. As intervenções não qualificadas costumam ser bastantes, costumam ser perigosas e, daqui a uns anos, vamos sofrer muito com esse tipo de intervenção. Eu acho que há duas explicações diretas. A primeira é, a justiça em Portugal funciona muito mal. E, portanto, quem faz mal não é punido, ou se é punido daqui a 20 anos quando o património já passou dez vezes de mão e, portanto, acaba por não ser punido. E depois os tempos que hoje em dia, não só a Câmara de Lisboa, mas a Câmara das cidades maiores, demoram, quer na avaliação dos processos, quer na emissão de licenças. É muito complicado para o investidor que vem habituado em outros meios de investimento rápido, conciso, direto e claro. E nenhum investimento é compatível com isso. Todo o resto cobra-nos a um esforço adicional, quer seja na insistência com as Câmaras e com os técnicos e com os gabinetes para que as coisas sejam mais céleres, quer com os nossos clientes, pôr travões para que as coisas não sejam céleres demais. Portanto, é um equilíbrio muito complicado, que eu acho que a Câmara deveria refletir bastante sobre isso. Por exemplo, foi um trabalho que já foi feito junto da Direção Geral do Património, porque antigamente ninguém queria ter património classificado porque tinha que ir ao IPAR e tinham os arqueólogos e hoje em dia isso é o elo mais simples da equação porque a partir do momento em que os trabalhos são qualificados ou acrescentam tal densidade, quer cultural, quer respeito total com o património, é claro que o corpo técnico da Direção Geral do Património e do arquitetónico e arqueológico têm essa noção e valorizam isso e são bastante céleres nas suas decisões. Não me parece lógico que um projecto de arquitectura esteja mais de dois meses na Câmara a ser avaliado, que projectos de especialidade estejam mais dois meses ou mais um mês a serem avaliados, não me parece. Isso dá azo a mil e uma coisas que nós não gostamos ou que não queremos. Situações de os clientes quererem, de os promotores quererem começar obras que não estão licenciadas, que nós não conseguimos explicar porque que não estão licenciadas e, portanto, põe-nos a nós também, arquitectos, um bocado, às vezes, em cheque, quando não temos esse papel.
LC - Como é que vê a cidade de Lisboa daqui a dez anos?
PS - Lisboa está a conseguir, apesar de tudo, sustentavelmente aguentar a pressão toda que está a ter. Acho que têm que ser criados limites em algumas situações, não sei exatamente como. Confesso que há argumentos para limitação da instalação dos alojamentos locais com os quais eu concordo, há uns com os quais eu não concordo. É difícil conseguir ter uma visão clara e transparente sobre o que que se deve permitir e o que que não se deve permitir. Sei que há algum património que se está a perder, mas era património que estava perdido também. Ou seja, havia uma degradação muito grande das cidades derivada do regime de arrendamento urbano que nos tínhamos que criou um grande bloqueio em qualquer tipo de investimento, qualquer tipo de investidor ou qualquer tipo de mais-valia que se pudesse ser possível introduzir quer no património especificamente, quer na cidade em si. Neste momento, desde 2006 que a cidade levou essa lufada de ar fresco, essa possibilidade de entrada de investimento porque também não foi só uma questão de crise, foi uma questão de alteração da legislação. Mesmo saindo da crise ou mesmo saindo da situação em que Portugal esteve entre 2004 e 2011, se não houvesse essa alteração provavelmente Lisboa continuava sedimentada e para lá da espera que ruísse, não é? Portanto, eu acho que daqui a dez anos, eu acho que vamos estar a traçar este caminho que estamos a traçar agora, se calhar com uma versão mais de cruzeiro, vamos estender qualidade de espaço urbano para zonas e para periferias que não têm ainda, mas que começam a também ganhar vida e ganhar, digamos, essa atividade e o reconhecimento que também lhes é devido. Hoje em dia, com as Câmaras e com a capacidade das próprias Juntas de terem mais ação, começa-se a requalificações muitos espaços exteriores e as pessoas começam a conseguir viver, sei lá, no Montijo sem sair do Montijo ou em Alfama sem sair de Alfama, ou em Benfica sem sair de Benfica. Porque, de facto, percebeu-se que as cidades não deveriam ser organizadas por núcleos, mas sim em núcleos e a junção de vários núcleos pluridisciplinares e plurifuncionais é melhor para a cidade do que a criação das cidades americanas com grandes núcleos separados de serviços e de habitação em que o único meio de transporte possível é o carro. Portanto, a criação de bairro acho que está indo num bom caminho. Acho que é isso que faz falta um bocado à Lisboa, é repensar.... Lisboa agora enquanto centro, enquanto cidade central. O que isso pode ter quer com o rio, quer com as cidades adjacentes na linha do rio e, depois, para dentro. Mas, vejo com bons olhos, sei que o investimento vai começar a não ser tão vantajoso porque é normal os preços subirem e o metro quadrado vai começar a não ser tão barato ou tão acessível e o alojamento local e todo o tipo de arrendamento que virá a seguir também não vai ser tão vantajoso ou tão apetecível. Acho que também há um papel importante a fazer do lado do legislativo, nomeadamente os benefícios para os arrendamentos que são de longo prazo, acho que por aí é uma forma mais, não é bloquear, mas desincentivar o alojamento local do que propriamente estar a criar cotas ou estar a criar limitações. Mas acho que a cidade vai continuar a ser cada vez mais limpa, mais percorrível a pé, mais para as pessoas.
Paulo Street é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, especialista em Recuperação de Edifícios e Monumentos Históricos pelo Instituto Superior Técnico e pós-graduado em Construção pelo mesmo Instituto. Foi Bolseiro de investigação do IST, entre 1998 e 2000, e Assistente convidado da disciplina de Projecto da FAUTL entre 2000 e 2002. Colaborou, em Macau, com o Atelier de Adalberto Tenreiro e, em Portugal, com Eduardo Trigo de Sousa, LCM Arquitectos, Luís Costa e Zinho Antunes, entre outros. Em 2003 iniciou a sua actividade em exclusivo por conta própria.