Entrevista com o Arquitecto Pedro Campos Costa

Os arquitetos portugueses têm muitas ferramentas, uma enorme capacidade de síntese, de tentativa de resolução de questões. No entanto, vejo muito enfraquecido o poder do arquiteto por não haver uma organização horizontal da profissão, honorários e ordenados, nem uma organização ao nível das competências e isso, obviamente, retira algum respeito, alguma valorização do arquiteto na sociedade.

LC –  Como é que poderia definir o momento atual de transformação de Lisboa?

PCC – Eu acho que mais do que definir, é pensarmos qual é o atual momento cultural da sociedade. Ou seja, há uma questão que para mim é muito cara que é a questão demolição. Ou seja, a demolição tem uma questão cultural por muitos séculos. É sempre difícil demolir ou é sempre difícil, dentro da mesma cultura, acharmos que temos que demolir. Se bem que, ao longo dos séculos, todas as culturas eram destruídas sempre por aquilo que eram a culturas dominante ou através das guerras sucessivamente. O movimento moderno é o movimento mais demolidor, sendo que, culturalmente, o que tinha uma missão maior de corte com aquilo que era o movimento passado e, portanto, daí a demolição e a questão da tabula rasa. E depois entramos numa espécie de - não sei se posso descrever como pós-modernismo, porque o pós-modernismo está extremamente cativo e filosoficamente enquadrado - uma deriva cultural sobre uma coisa que é: tudo quase que tem que ser preservado, independentemente do seu valor. Porque a preservação começa a ser uma questão emocional. As próprias pessoas na internet ou quando vão viajar ou quando vem a Lisboa ou quando nós vamos a outro sitio, emocionam-se ou gostam da experiência e depois querem-na preservar, ou através da fotografia ou através de várias maneiras. E, portanto, esta coisa da preservação é como se fosse uma coleção enorme de coisas. Portanto, nós estamos a colecionar sempre emoções e desejos. E isso está claramente visível na nossa cidade, não só de Lisboa, mas várias cidades, que é uma espécie de tendência para as pessoas preservarem sem qualquer tipo de critério. E quando eu digo isto, muitas pessoas podem até inclusivamente achar que estou a exagerar porque é evidente que existe património classificado, que demorou imensos anos em Portugal a conseguir-se. Existe um património arqueológico e cultural que demorou desde 1974 imenso tempo a construir. Ou seja, foi muito difícil em Portugal implementar este património. E, portanto, é provocatório no sentido de eu dizer “Bem, agora as pessoas até querem preservar demais, não é?”. Quando efetivamente, durante 20 ou 30 anos em Portugal, foi muito difícil de preservar porque se destruiu muito património. E as pessoas têm realmente muita dificuldade em perceber porque se, há 20 anos atrás, era muito difícil preservar, hoje é quase impossível demolir porque há quase um nojo ou quase aversão à demolição de uma forma única nos tempos. Ou seja, também não sou historiador, mas daquilo que eu estudei, não me recordo de haver momentos na História que tenham sido tão conservadores em relação ao património seja ele de que tipo for. Portanto, o património, a determinada altura, mesmo que tenha sido construído ontem ou há 20 anos, não tenha qualidade nenhuma arquitetónica, não tenha nenhum sentido morfológico e de cidade, etc., e mesmo assim porque as pessoas....  Vou dar exemplos muito concretos, por exemplo, até da construção porque é a demolição de uma memória que existe lá e, portanto, há a construção. Uma delas que é o “mono do Rato”, alcunhado brilhantemente pelo nosso presidente da Câmara Municipal, Fernando Medina, e que eu tenho imensa dificuldade, apesar de muita gente já me ter explicado onde é que está o mono e onde é que está o elefante. Olhando, não sendo sequer um especialista urbano ou nem sequer sendo um arquiteto, basta chegar ali ao rato e percebe-se que aquilo foi um nó, um nó urbano muito complexo a nível dos transportes e da circulação. Um espaço que tem imensos layers ao longo dos séculos e, portanto, muito complexo, nunca resolvido e, de repente, aparece ali aquele edifício que as pessoas sentem-se muitos ofendidas e não sei por que muitas pessoas dizem “Já viste esta imagem como é feia? “. Não sei, porque o edifício ao lado é muito mais feio que aquela imagem, mas isso eu não tenho dúvidas e qualquer pessoa acha isso, tenho certeza absoluta. Se fosse em Alfama, fazer um edifício com a volumetria daquele gênero... Agora no Rato, uma zona que é uma praça gigante de trânsito.... Antes pelo contrário, ele se calhar devia ser o dobro do tamanho e com muito mais peso, aquilo é pequenino. Portanto, há aqui um discurso, isto é um exemplo possível, que é um dos exemplos mais marcantes, mais discutidos, etc., na praça pública. Também podia falar sobre a torre de picoas, mas isso é uma coisa mais politica que efetivamente arquitetónica, mas há aqui esta aversão a demolição, preservação de tudo, seja lá o que for, a qualquer nível.

LC - Em Lisboa ou no Porto nunca os arquitetos produziram tanta mais-valia financeira para o setor imobiliário.  Qual é o seu lucro nesta equação? Qual é afinal o papel da arquitetura?

PCC - Eu não sei a arquitetura cria mais-valias. A arquitetura só cria mais-valias quando é arquitetura. Vou me fazer explicar. Não tenho esta visão muito paternalista da arquitetura em que os coitadinhos dos arquitetos são fustigados pelo imperialista promotor imobiliário ou quem quer que seja. Acho que os arquitetos são conscientes ou se não são conscientes não deviam ser arquitetos daquilo que estão a fazer. E realmente a arquitetura cria mais valias, mas nem sempre cria mais-valias. Eu posso explicar: a arquitetura cria mais-valias quando realmente transforma o sítio, transforma o lugar, numa coisa muito melhor, a determinado valor. Mas nem sempre o transforma, muitas vezes faz reabilitação, muitas vezes até faz conservação. Não quer dizer que não crie mais-valia com isso, mas aquilo que eu acho que é a discussão que é mais interessante a partir da tua pergunta é a questão, que eu muitas vezes digo que não tem nada a ver com a questão que estamos a passar neste momento histórico, tem mais a ver com a questão dos honorários dos arquitetos. Ou seja, os honorários dos arquitetos não correspondem ao trabalho que eles fazem, seja ele a criar mais-valias ou não criar mais-valias. Portanto, não correspondem de forma alguma. Não é que o dono da obra esteja a ganhar muitos lucros ou a ganhar poucos. Tem a ver com o facto de que quando se vai a um médico, o valor de uma consulta é X e toda a gente sabe, mas quando se vai a um arquiteto o valor ninguém sabe. Não há valorização do trabalho de arquitetura. Portanto, nada é comparável com nada. Ninguém questiona, nem eu, nem tu, nem ninguém. Nós às vezes vamos a médicos maus, até dizemos "aquele médico, não vás, que é uma porcaria!", mas pagamos na mesma no final. E, para além disso, quando encontramos um médico bom, todos vamos e todos queremos e vamos passando a mensagem uns aos outros. Na arquitetura não é assim. Primeiro, porque não se paga ou quando se paga, paga-se muito pouco e os clientes querem sempre pagar menos. Também porque não existe evidentemente uma organização, que na minha opinião deveria ser a Ordem, que organizasse os honorários dos arquitetos como os ordenados dos seus colaborares. Isso é essencial porque se não for organizado o mercado de trabalho, é muito difícil que isso exista. Como existe efetivamente na medicina. Estou com dificuldades em perceber quando alguém diz que é contra a regulação dos ordenados e honorários dos arquitetos. Porque em outas profissões, como a medicina está tudo escalonado, ou seja, – claro, há exceções, há um mercado que sobe e depois desce - há uma regra, há uma base, há um padrão. E, portanto, esse padrão é que tem que ser a regra e não a exceção. O que nos estamos a ver neste momento é uma desfragmentação total e que nem sequer é mercado. Não existe mercado nenhum, quem diz que isto que estamos a funcionar é mercado, é mentira, porque não existe mercado.

LC -  A tua resposta leva-me a uma questão que me parece fundamental que é esta comparação. Com médicos, nós sabemos o que é um bom médico que é aquele que cura e que resolve o problema ao paciente. Agora, se pensarmos na arquitetura e nos arquitetos que tem tal público e que são recomendados.... Mesmo pensando neste escalonamento e nesta organização do trabalho e do valor do trabalho dos arquitetos, depois seria interessante pensar o que seria a boa arquitetura, não é?

PCC - Isso é outra conversa e essa conversa é um bocadinho moralista. Não há boa nem má arquitetura...

LC - Há a arquitetura que responde há questões e arquitetura que não responde.

PCC - O que estavas a dizer há bocado, se cria mais-valias ao dono de obra ou ao produtor, nem sempre cria, às vezes cria. A questão de ser bom ou mau arquiteto.... Há evidentemente coisas objetivas em que o arquiteto pode ser avaliado. Quer dizer, não há subjetividades assim tão grandes. Não é fazer coisas bonitas ou feias.... Há coisas de resposta, há tempos a cumprir, se o edifício resvalou ou não resvalou, se foi bem construído, se foi mal construído, se a relação com o construtor foi boa ou se foi má, se a relação com os engenheiros foi boa ou má, se o projeto estava bom ou estava mau. Há imensas coisas que podem ser avaliadas. Nós somos uma profissão liberal, portanto, isso pode ser tudo avaliado. Evidentemente, no caso, na comparação em que tu estavas a dizer, em que os médicos curam ou não curam as pessoas, muitas vezes até nem curam, mas também tens uma parte emocional em relação ao médico. Se tu fizeres uma casa e a pessoa se sentir muito bem na casa, gostar imenso da casa, quando leva os amigos, dizem "Casa espetacular, quem é o arquiteto?". Claro que isso é um bom arquiteto independentemente do vocabulário e daquilo que nós considerarmos que pode ou não ser a tendência do momento arquitetónica, mas ele será obviamente um bom profissional, na minha opinião.

LC - O que pensa das obras de reabilitação que estão a decorrer em Lisboa? Poderemos falar de uma nova cultura da construção?

PCC - Não. Não podemos falar de nada. Da cultura da construção de certeza que não. Percebo que estamos a ficar mais norte-europeus no Excel, digamos, e na responsabilização, na legislação, nos budgets, numa quantidade de coisas... Com uma cultura arquitetónica que vem de escolas, e que vem de montes de coisas: do clima, da gastronomia, de tudo e mais alguma coisa. E que esta cultura arquitetónica obviamente tem um confronto com esta nova chegada, especialmente com estes novos fundos, com os managers, todas estas coisas inglesas que nos chegam por aqui afora que está a fazer uma espécie de fricção com uma forma de fazer projeto, que não é muito habitual. Nós achamos que temos uma enorme resiliência. Os arquitetos portugueses têm muitas ferramentas, uma enorme capacidade de síntese, de tentativa de resolução de muitas questões. No entanto, eu vejo muito enfraquecido o poder do arquiteto pelas questões que nós falamos anteriormente: por não haver uma organização horizontal da profissão, honorários e ordenados; não haver uma organização ao nível de varias questões, competências, etc. e isso, obviamente, retira algum respeito, alguma valorização do arquiteto na sociedade, apesar de nós termos nomes internacionais, que não temos em outras áreas. Portanto, temos na arquitetura, comparável ao Chile, comparável ao Japão ou Suíça, por exemplo. São países pequenos, mas com uma enorme cultura arquitetônica. Os dois últimos, Suíça e Japão, têm muito dinheiro e, portanto, fazem arquitetura com muito dinheiro. O Chile tem muito pouco dinheiro, mas tem uma enorme relação com a arquitetura, portanto, é um case studie muito engraçado e muito interessante em que eles realmente têm uma espécie de imagem interessante sobre aquilo que é o arquiteto. Nós também tínhamos. Eu acho que nós tivemos aqui um momento dos anos 1980 mais ou menos, final dos anos 1980 até agora, e acho que agora estamos a perder por por várias razões. Não tem a ver, mas também tem a ver, com o momento económico que estamos a viver em que existe os managers todos a entrar, mas já estávamos a perder quando nós começamos a internacionalizar. Durante a Troika, houve uma entrevista do Souto Moura e não só, acho que mais arquitetos, que obviamente, não havendo trabalho em Portugal, começaram a internacionalizar e muito bem. Eu lembro me perfeitamente de uma entrevista do Eduardo Souto Moura que dizia que a arquitetura tinha acabado ou que tava a acabar, quando é de sua experiência internacional. E que, obviamente, apontava para muitos problemas que, como eu vi vários anos na Holanda, me pareceram perfeitamente banais. Ou seja, ele fez umas torres, por exemplo, na China em que tinha vidros curvos e uma coisa que fizeram foi tirar os vidros curvos, mas o edifício vivia dos vidros curvos. Este maior fluxo económico e a forma de ver o valor das coisas faz com que seja necessário um tipo de ferramentas que, obviamente, a arquitetura portuguesa está muito protegida, na minha opinião. Não quer dizer que a arquitetura portuguesa tenha uma identidade muito própria, ou seja, muito unânime, mas existe realmente uma nuvem, uma espécie de uma nuvem cultural acima, existe sempre em todos os países. E agora acho que vai haver uma revolução. Portanto, se tu dizes que marca uma nova era da construção, acho que não, para voltar a tua pergunta. Nem sei se é muito caso específico, é mais aquilo que estava a dizer, que vai se transformar com esta nova geração numa outra coisa arquitetónica, de vocabulário arquitetónico, não de construção.

LC - Como é que vê a cidade de Lisboa daqui a 10 anos?

PCC - Muito bem, obrigada. Não faço ideia. Tem um amigo meu que se chama Mário Alves, que é engenheiro de mobilidade, que para nos divertirmos bebemos cervejas e dizemos o que é que vai ser do futuro. E é giro porque como o pai dele também fazia esse tipo de exercício, ele depois começa-me a contar "Meu pai em 1980, dizia que...". E nunca se sabe. Portanto, a futurologia é uma coisa que nem os astros, nem os signos, nem as bolas de cristal acertam, mas nós queremos sempre fazer esse exercício. E, portanto, eu posso fazer porque é um exercício divertidíssimo. Eu acho que são sempre distopias. Nunca é aquilo que nos achamos que é. É sempre tudo ao contrário e é sempre um bocadinho de tudo.  Nunca é como achamos que deveria ser ou o que acham que deve ser. Acho que Lisboa daqui a 10 anos pode ser duas coisas, para fazer uma resposta política. Uma se se tomar determinado tipo de politicas, outra se determinado tipo de políticas. Não estou a falar de arquitetura, nem de urbano, estou a falar de mera economia. Podemos ir por um caminho que é o caminho de Barcelona ou de Veneza, que é não regular rigorosamente nada e, portanto, deixar que o turismo entre, que se esvazie as cidades. Dizendo isto, digo já, que não sou nada contra o turismo, sou muito a favor do turismo, que é uma indústria como qualquer outra e que não tenho nada contra nenhum tipo de indústria e esta também não. Até gosto muito, acho que é muito interessante porque é uma cultura de experiências urbanas e de paisagens que se alimenta da arquitetura também, portanto, temos todo o interesse... Mas o que aconteceu em Veneza e o que aconteceu em Barcelona, de outra forma, ao longo de mais anos, na minha opinião, com menos pressão, foi uma gentrificação violenta que desertificou completamente os centros e que efetivamente tem o seu custo. E o custo está a vista e está a ser pago: cidades muito abandonadas, vazias nos seus centros, com pouca densidade, pouco interesse. Quer dizer, eu pergunto-me se alguém que pensa duas vezes quer realmente ir à Veneza ou à Barcelona ter uma experiência. O pessoal vai a Veneza e a Barcelona ver um bocadinho mais de museus ao ar livre do que ver cidades. Não foi há muito tempo atrás que eu, quando ia a Veneza, via mesmo pessoas na rua, etc., via putos e tal, e era uma cidade. Agora já não é, agora é um fluxo de turistas. Portanto, este pode ser um, digamos, um futuro para Lisboa, um bocado previsível, olhando para aquilo que aconteceu atrás e se nós não tomarmos nenhum tipo de medidas. Se tomarmos medidas politicas nesse sentido, que é difícil.... Não é só turismo, acho que aqui o que está mais até é a gentrificação, a forma como se está a gentrificar, que é muito violenta. Compra e vende, compra e vende, compra e vende… O que obviamente faz com que ninguém consiga comprar, só os fundos e as pessoas com muito dinheiro consigam viver no Centro.  Portanto, se não houver medidas para resiliência, para isto não acabar num museu, acho que pode ser uma cidade super hiper interessante. A questão do equilíbrio entre todas estas indústrias e todas pessoas é que faz o interesse. Eu não sou daqueles nostálgicos que diziam que há dez anos atrás é que era bom, porque eu há dez anos atrás vinha para o atelier e muitos colaboradores meus pediam me para às dez da noite acompanha-lhes ao metro porque a baixa estava vazia, horrível, estava tudo abandonado. Aliás, nem seria muito coerente se eu fizesse outra coisa. Em 2014, fizemos a bienal de Veneza, em que fizemos um dos jornais capa, o dossier era sobre o abandono de todas as cidades, não só de Lisboa. Lisboa, Porto e todas as capitais do país. Portanto, os centros históricos estavam e estão abandonados de alguma maneira. Agora, obviamente, estando abandonados, a gentrificação foi muito mais rápida, estavam vazios. E, portanto, eu não sou um nostálgico do passado a pensar, mas tenho algum receio sobre o futuro se não se tomarem as medidas. Quais é que são as medidas? Eu não sendo político não sei, mas tenho umas luzes que não será de certeza gentrificar. Na Suíça, há uma lei, que eu sei que é difícil porque eles são ricos, não é, há uma lei em que não permitem a gentrificação, no sentido em que se comprar um edifício e dentro de dois anos o vender, tem que pagar 60% de impostos, algo assim do gênero. Portanto, uma coisa que obviamente, trava a gentrificação e evidentemente, isso é uma ferramenta importante para não esvaziarmos ainda mais a cidade. 

 

 

 

Pedro Campos Costa é arquitecto, fundador e sócio-gerente dos Campos Costa Architects desde 2007. Autor de projetos de arquitetura como a Extensão de Aquário de Lisboa (2011), o Hotel Ozadi Tavira (2014) e do Consulado de Portugal no Rio de Janeiro (2017). Foi curador da Representação Oficial Portuguesa na 14ª Exposição Internacional de Arquitetura - La Biennale di Venezia, com o projeto "Homeland. News from Portugal" em 2014. Pedro lecionou e foi conferencista em várias escolas em todo o mundo e também foi um editor em diferentes revistas de arquitetura em Portugal e Itália.